09 de novembro de 1999...
Uma data tão absurdamente remota e tão
comodamente incomum, que seria até difícil de acreditar, se ela
quisesse – e ainda se pudesse – contar tudo aquilo para alguém.
Jamais pensou que voltaria a sentir tudo aquilo de novo. Era tão
menina naquela época, de uma vivência tão incipiente, de uma
noção de vida menor ainda...
Lembrava-se de ter pedido àquela pessoa
para que não contasse nada a ninguém, nenhum detalhe do que
aconteceu. Sequer seus familiares souberam do ocorrido. Era uma
menina alarmada naquele dia, sem saber onde ficar ou para onde ir,
acreditando conhecer os mistérios da vida e da morte. Quanta
ingenuidade... Não passava de uma garota mimada, cheia de ilusões,
querendo viver num mundo de sonhos que sequer eram os seus.
Naquele mesmo dia, aquela mão
estendeu-se literalmente para fora da janela - aberta, dedos ávidos
por alcançar, por tirá-la de um voo que não era o seu. Não era
sua hora de voar, não daquele jeito. Ainda se lembrava nitidamente
das palavras que a salvaram:
“Olhe para mim... olhe dentro dos meus
olhos... você não quer fazer isso... e você sabe.”
Lá embaixo a cidade não parou para
vê-la dar um fim a tudo aquilo. Carros trafegando, buzinas
barulhentas, uma fumaça negra que encobria quase todo o pôr-do-sol
daquela tarde. Aquele poderia ter sido seu último pôr-do-sol... Mas
ela decidiu buscar os dedos estendidos em sua direção. Para nunca
mais voltar atrás... E ali estava ela de novo, lembrando, revivendo.
Já não era mais uma menina. Vinte anos
havia se passado. Renascera naquele dia, como se num parto
voluntário de si mesma, amparado pela mão estendida da janela. O
coração em seu peito batia tão forte quanto naquele dia: batidas
profundas, como se prenunciasse algo.
Conversaram muito naquela tarde, após o
pôr-do-sol e o renascimento. Saiu de lá apenas muitas horas depois,
quando já era noite. E todas as tardes, ao mirar o espetáculo da
despedida solar, lembrava-se que aquela poderia ter sido a sua
própria despedida. Mas não foi. E agora ela recebia um chamado
urgente da mesma mão que a salvara naquele dia, mãos e olhos que
não via há vinte anos...
O elevador parou no andar com um
solavanco. Seu coração aprofundava cada vez mais as batidas. Parou
à frente da porta do apartamento... Olhou para os lados. O mesmo
prédio daquele mesmo dia... Mas muita coisa havia mudado. Muita
coisa.
A porta estava estranhamente entreaberta.
Dentro ouvia-se uma música. Seu coração tamborilava, e ela
respirava profundamente. O ar tinha perfume de jasmim. Aproximou-se,
mas continuou parada à porta.
- Entre.
Estava esperando por você.
Já era uma senhora. Os cabelos
propositalmente brancos denunciavam que o tempo não fazia muita
diferença para ela. Mas já havia se passado vinte anos. E ela, do
alto de sua sabedoria, parecia não se importar.
- Por
favor, sente-se. Não nos vemos há vinte anos, mas você sabe que
não é preciso de cerimônia para aproximar-se. Veja, preparei o
chá que você gosta. Foi a primeira coisa que você...
- Foi
a primeira coisa que pedi depois que segurei sua mão. Eu me
lembro... Como poderia esquecer? Só não consigo entender...- Por que eu a chamei aqui? - ela olhou para fora da janela. - Acho que a resposta é óbvia, não é?
- Você está pensando em...
- Não, claro que não. A idade não me permite mais dependurar-me sobre minha própria sorte.
- Então... Por que me chamou aqui?
A senhora se virou... E ela pôde ver que seus pés e pernas já não podiam se mexer. E que seu corpo idoso
quase não lhe servia mais. Mas estava lúcida. Alguém provavelmente
lhe servia durante o dia e deixou o jantar pronto, preparou o chá,
trocou a água dos jasmins, colocou a música para tocar. Só que,
naquela noite, a senhora parecia ter recusado aquela companhia.
Ela se sentou com reverência. Pegou a
xícara de chá e deu o primeiro gole. Não conseguiu falar, pois não
conseguia mais acompanhar – nem entender – as batidas do seu
coração. Algo prenunciava um novo começo... Outro renascimento. A
senhora, no entanto, falou.
A xícara caiu sobre o chão revestido de
madeira, e um som abafado ecoou por sobre a música que tocava
incessantemente. O chá escorreu pelo chão até os pés da senhora,
que olhava a cena com serenidade. Ela tentou ajoelhar-se para secar o
líquido, mas ouviu de uma voz doce:
Sobre os joelhos, sentindo seu corpo e
coração perdendo forças, debruçou-se sobre o colo da velha
senhora chorando em soluços. Não conseguia entender que destino
cruel a levara a encontrar-se naquela situação com a pessoa por
trás da mão que lhe dera auxílio, vinte anos depois. Um sentimento
de revolta tomou conta dela... Mas já não era tão jovem a ponto de
não conseguir entender o que se passava ali. Aquela senhora sabia
que era hora de partir...
A senhora a olhou com o mesmo olhar
maternal daquela tarde... E sorriu.
Fizeram muita coisa durante aquela noite.
Contaram histórias, ouviram músicas, falaram de amores e desamores,
sobre o destino, sobre a vida e a morte. E sobre os laços que as
uniam para além de tudo aquilo.
Dessa vez, não assistiram ao pôr-do-sol.
Passaram para além dele... e assistiram, juntas, ao nascer do
sol do dia seguinte...
Pela primeira e última vez.
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