Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


sábado, 16 de março de 2013

Teardrop - Massive Attack


09 de novembro de 1999...
Uma data tão absurdamente remota e tão comodamente incomum, que seria até difícil de acreditar, se ela quisesse – e ainda se pudesse – contar tudo aquilo para alguém. Jamais pensou que voltaria a sentir tudo aquilo de novo. Era tão menina naquela época, de uma vivência tão incipiente, de uma noção de vida menor ainda...
Lembrava-se de ter pedido àquela pessoa para que não contasse nada a ninguém, nenhum detalhe do que aconteceu. Sequer seus familiares souberam do ocorrido. Era uma menina alarmada naquele dia, sem saber onde ficar ou para onde ir, acreditando conhecer os mistérios da vida e da morte. Quanta ingenuidade... Não passava de uma garota mimada, cheia de ilusões, querendo viver num mundo de sonhos que sequer eram os seus.
Naquele mesmo dia, aquela mão estendeu-se literalmente para fora da janela - aberta, dedos ávidos por alcançar, por tirá-la de um voo que não era o seu. Não era sua hora de voar, não daquele jeito. Ainda se lembrava nitidamente das palavras que a salvaram:

Olhe para mim... olhe dentro dos meus olhos... você não quer fazer isso... e você sabe.”

Lá embaixo a cidade não parou para vê-la dar um fim a tudo aquilo. Carros trafegando, buzinas barulhentas, uma fumaça negra que encobria quase todo o pôr-do-sol daquela tarde. Aquele poderia ter sido seu último pôr-do-sol... Mas ela decidiu buscar os dedos estendidos em sua direção. Para nunca mais voltar atrás... E ali estava ela de novo, lembrando, revivendo.
Já não era mais uma menina. Vinte anos havia se passado. Renascera naquele dia, como se num parto voluntário de si mesma, amparado pela mão estendida da janela. O coração em seu peito batia tão forte quanto naquele dia: batidas profundas, como se prenunciasse algo.
Conversaram muito naquela tarde, após o pôr-do-sol e o renascimento. Saiu de lá apenas muitas horas depois, quando já era noite. E todas as tardes, ao mirar o espetáculo da despedida solar, lembrava-se que aquela poderia ter sido a sua própria despedida. Mas não foi. E agora ela recebia um chamado urgente da mesma mão que a salvara naquele dia, mãos e olhos que não via há vinte anos...
O elevador parou no andar com um solavanco. Seu coração aprofundava cada vez mais as batidas. Parou à frente da porta do apartamento... Olhou para os lados. O mesmo prédio daquele mesmo dia... Mas muita coisa havia mudado. Muita coisa.
A porta estava estranhamente entreaberta. Dentro ouvia-se uma música. Seu coração tamborilava, e ela respirava profundamente. O ar tinha perfume de jasmim. Aproximou-se, mas continuou parada à porta.

- Entre. Estava esperando por você.

Já era uma senhora. Os cabelos propositalmente brancos denunciavam que o tempo não fazia muita diferença para ela. Mas já havia se passado vinte anos. E ela, do alto de sua sabedoria, parecia não se importar.

- Por favor, sente-se. Não nos vemos há vinte anos, mas você sabe que não é preciso de cerimônia para aproximar-se. Veja, preparei o chá que você gosta. Foi a primeira coisa que você...
          - Foi a primeira coisa que pedi depois que segurei sua mão. Eu me lembro... Como poderia esquecer? Só não consigo entender...
          - Por que eu a chamei aqui? - ela olhou para fora da janela. - Acho que a resposta é óbvia, não é?
          - Você está pensando em...
          - Não, claro que não. A idade não me permite mais dependurar-me sobre minha própria sorte.
          - Então... Por que me chamou aqui?

A senhora se virou... E ela pôde ver que seus pés e pernas já não podiam se mexer. E que seu corpo idoso quase não lhe servia mais. Mas estava lúcida. Alguém provavelmente lhe servia durante o dia e deixou o jantar pronto, preparou o chá, trocou a água dos jasmins, colocou a música para tocar. Só que, naquela noite, a senhora parecia ter recusado aquela companhia.
Ela se sentou com reverência. Pegou a xícara de chá e deu o primeiro gole. Não conseguiu falar, pois não conseguia mais acompanhar – nem entender – as batidas do seu coração. Algo prenunciava um novo começo... Outro renascimento. A senhora, no entanto, falou.

         - Penso em você todas as noites, minha querida. Apesar de tê-la livrado de abandonar-se naquele dia, fui eu que revivi desde então. Passei a ver a vida e a morte de um jeito diferente. Morri e renasci diversas vezes nesse mundo... mas agora está na hora da despedida.

A xícara caiu sobre o chão revestido de madeira, e um som abafado ecoou por sobre a música que tocava incessantemente. O chá escorreu pelo chão até os pés da senhora, que olhava a cena com serenidade. Ela tentou ajoelhar-se para secar o líquido, mas ouviu de uma voz doce:

        - Deixe estar, criança. As coisas são como devem ser.

Sobre os joelhos, sentindo seu corpo e coração perdendo forças, debruçou-se sobre o colo da velha senhora chorando em soluços. Não conseguia entender que destino cruel a levara a encontrar-se naquela situação com a pessoa por trás da mão que lhe dera auxílio, vinte anos depois. Um sentimento de revolta tomou conta dela... Mas já não era tão jovem a ponto de não conseguir entender o que se passava ali. Aquela senhora sabia que era hora de partir...

        - Por favor, me diga... o que eu posso fazer pela senhora?

A senhora a olhou com o mesmo olhar maternal daquela tarde... E sorriu.

        - Apenas me estenda sua mão... E deixemos que o tempo faça o resto... como tem feito há vinte anos.

Fizeram muita coisa durante aquela noite. Contaram histórias, ouviram músicas, falaram de amores e desamores, sobre o destino, sobre a vida e a morte. E sobre os laços que as uniam para além de tudo aquilo.
Dessa vez, não assistiram ao pôr-do-sol. Passaram para além dele...  e assistiram,  juntas, ao nascer do sol do dia seguinte...
Pela primeira e última vez. 

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