Não é nenhum
segredo que os sons em geral e a música em particular são capazes de elevar
nossa consciência (ou nossa inconsciência) a patamares que por vezes desconhecemos.
Nossa primeira troca com o mundo, quando ouvimos o ritmo incessante do coração
de nossa mãe ainda dentro do útero, e – conforme acreditam alguns - também
nossa última troca com as idas e vindas da experiência sobre a Terra.
Nosso sistema
auditivo é altamente especializado e frágil, algumas de suas células nunca se
renovam e é o único sentido que não pode ser anulado nem por nós mesmos. Mesmo
sem estarmos conscientes dos sons à nossa volta estamos ouvindo, memorizando e,
se esses mesmos sons forem associados a alguma emoção que mobilize de forma
intensa nossa mente e nosso corpo, ficam guardados dentro de nós para sempre.
Como a mão de
Pandora, que abre o baú das virtudes e agruras do ser humano, a música é capaz
de revelar a nós mesmos todo o conteúdo de nossa memória, de nossa emoção
esquecida, de acontecimentos marcados como tatuagem sobre nossos sentidos,
suscitando sensações inúmeras que por vezes não conseguimos classificar. É
através da música que uma cultura se revela, é nela que a história de um povo
está hermeticamente guardada, intacta, podendo ser acessada em qualquer lugar do
espaço e do tempo.
A música é
amplamente utilizada para levar e elevar a expressão humana – e, no nosso mundo
nada ideal, também aplacá-la – trazendo em si a propriedade de ligar e desligar
características dentro de nós, abrir ou fechar canais, sintonizar-nos com ondas
vibratórias que perpassam cada uma de nossas células em seu próprio compasso.
Indígenas, xamãs, sacerdotes, ditadores, mestres, pessoas comuns ou nada comuns...
Todos fazem uso desse recurso, e sabem exatamente onde está o seu poder. A
música é uma parte indissociável de nossa natureza humana e, como toda arte,
não se encerra em si mesma.
A voz foi nosso
primeiro instrumento musical. Fazemos sons para mostrar nossos sentimentos,
nossas sensações, nossas impressões e repressões do mundo. Toda arte tem essa
propriedade... e a arte do discurso e da música sempre estiveram
intrinsecamente conectadas (os antigos bardos que o digam). A partir daí,
quando passamos a registrar pela escrita o que nossa voz comunica, escrever,
cantar e tocar formaram um grupo poderoso a que pouca coisa se compara no
quesito expressão.
Vinte e um
dias... Por que vinte e um dias? Toda arte tem sua métrica e sua forma, de
maneira maravilhosamente não aleatória. Sabe-se que o universo como um todo é
criado e recriado a partir de uma matemática própria, uma grafia de si mesmo que
se repete em cada corpo celeste e em cada ser vivo. Muito já se falou a
respeito dos números ímpares, não só por sua propriedade indivisível, mas por
sua forma não dicotômica. Não temos neles nada que se anule nem se complete, e sim
propriedades completas por si só, ainda que não isoladas... apenas únicas,
especiais... enfim, ímpares. Algumas culturas acreditam serem necessários vinte e um dias para criar (ou recriar) um hábito, bem como para se desfazer dele. Nada
mais apropriado quando falamos de música. Passar para além da estranheza, da
não aceitação, da vontade de se desapegar e, por fim, deixar que a mágica se
faça por si só. Aquela mesma mágica que anima o corpo e reanima a alma...
Com o respaldo
da licença poética inofensiva, permitam-me fazer uma pequena correção: “No
princípio, era a música.” A música da vida, sucessora do silêncio criativo,
irmã da poesia.
No princípio, era
a música... depois dela, o verbo. Pois que venha da música o verbo... Vinte e um
dias de música e verbo.
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