Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


segunda-feira, 18 de março de 2013

Cruzeirinho - Hinos Novos - Mestre Irineu (Santo Daime)


Parou à soleira da porta como se tivesse saído de casa ontem. Não era mais o pau de arara que o levava e trazia da cidade. A poeira vermelha agora cobria seus caros sapatos, e não mais os pés descalços de menino. Homem feito, não mais pisava aquele solo com a cerimônia de quem caminha sobre seu sustento. Aquelas miudezas da vida haviam saído dele como a terra é lavada dos pés. E ele não se arrependia... mas não esquecera o que havia dito à sua mãe, com lágrimas nos olhos, quando saiu de casa aos quinze anos:

 - Eu volto um dia, mãe... mas volto mudado. Volto aqui pela senhora. Só não me peça pra ficar...

Aquele era o dia de sua volta. Não como o menino que saíra com lágrimas de raiva nos olhos... e sim mudado no homem feito, que não reconhecia mais a terra como a Mãe de tudo aquilo que ele era, mas decidira não ser mais. Os sons das árvores já não lhe traziam a mesma sensação de liberdade. Os mais de trinta anos na cidade tiraram dele o último grão de pó vermelho sobre sua alma... E ele não se reconhecia mais naquela terra.

A casa já não parecia mais tão grande como um dia foi. Sua família, apesar de pobre, era considerada uma das mais abençoadas da região: o solo nunca trincava, os animais nunca morriam, as plantações sempre prosperavam. O povo do vilarejo ao lado acreditava que seus ancestrais sabiam conversar com a natureza, ouvir o chamado do vento e acarinhar com alento as necessidades da terra. Eram pobres, mas consideravam-se afortunados. E essa não era a opinião dele... Por isso decidiu ir embora. No entanto, não poderia se esquecer da promessa feita à sua mãe: voltaria por ela. E era exatamente o que fazia ali, terras sobre os sapatos, naquele dia. Não por vontade própria... Mas por que recebera um telegrama de seu pai.

A casa parecia vazia. Poucos móveis, vários retratos pendurados nas paredes, um para cada membro de cada geração. Não deu muita atenção a eles, como se não quisesse se lembrar. A única coisa que lembrava é que, quando algum ente querido falecia, o seu retrato era retirado da parede ao lado da porta de entrada e colocado na parede sob a qual jazia um altar.

Buscou em volta por um olhar conhecido. No pomar, algumas crianças corriam e brincavam alegremente, alheias à sua presença. A paisagem parecia intocável; sentia como se houvesse uma barreira invisível entre aquele ambiente e ele. Por um momento, pensou em virar-se e ir embora. Mas, ao fundo, um coro de vozes parecia entoar uma mensagem...

- Entre, meu filho. Que bom que recebeu meu telegrama.

Ouviu a voz rouca de seu pai falar de um lugar escuro da sala. Ele olhava para fora da porta que dava para a varanda aos fundos da casa. Parecia ter nas mãos algum objeto, que segurava como a um tesouro.

- Claro que recebi... Mas não entendi por que me chamou aqui, hoje.

O pai engoliu antes de falar.

- Você prometeu que um dia voltaria para sua terra, para sua casa... mas mudado. E também falou para a gente não pedir pra você ficar...

- Sim, meu pai. Eu me lembro muito bem do que disse.

O pai nada falou. Apenas continuou a alisar o objeto. Olhou para fora, onde as crianças brincavam, e cantarolou a música que o coro entoava no fundo do quintal. A atmosfera parecia de festa, de honra, de celebração. Mas a casa estava estranhamente escura. Era fim de tarde, e nenhuma vela ainda havia sido acesa. Sua mãe tinha sempre o costume de acender todas as velas da casa ao cair da tardinha para que a luz nunca faltasse, a começar pela luz do altar.

Ele se virou para confirmar se o altar ainda existia... Lá estava ele. Imagens de santos, fotos de parentes, flores... Tudo em seu lugar. Com apenas uma vela acesa.

Os pássaros da noite começavam a piar em seus ninhos, chamando seus filhos de volta... Foi quando algo se acendeu dentro dele. Apesar de ter recusado suas origens, era impossível não ser tocado mais uma vez por aquela atmosfera. Ouviu, ao longe, a voz de sua mãe chamando-o para entrar e ajudar a incendiar a luz interna. Sua família o havia ensinado a preservar a luz de dentro intacta, ainda que nenhuma luz fosse vista do lado de fora. Aquela luz nunca podia se apagar. E se ele tivesse aquela luz queimando eternamente, sempre poderia se lembrar de quem era.

A luz se acendeu novamente dentro dele... E ele pôde compreender. Caminhou vagarosamente até seu pai, enquanto falava:

- Eu disse que voltaria pela minha mãe.

- Sim, meu filho... pela sua mãe.

Ao se aproximar, mesmo com a pouca luz, pôde ver o que era o objeto nas mãos de seu pai. Um vento soprou forte para dentro da casa, apagando a vela do altar. Olhou para a parede ao lado da porta de entrada, onde estavam os retratos da família. Retirou com reverência o objeto das mãos de seu pai, caminhou até o altar, pendurou o retrato e acendeu a vela que se apagara.

Uma por uma, acendeu as velas da casa até que todas estivessem acesas. Fechou as janelas para que o vento não as apagasse. Era preciso manter a luz interna acesa, sempre, seja qual fosse a ocasião. Sentia que estava pronto para reassumir o lugar que lhe cabia naquele contexto.

- O coro já está cantando, meu filho. É hora de liberar o cortejo.

Voltou até onde estava o pai e o ajudou a se levantar, sem dizer uma palavra sequer. Pegou-o pelo braço e seguiram juntos até onde estava o corpo de sua mãe, envolto em flores, crianças, cantigas e luz... muita luz.

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