Parou à soleira da porta
como se tivesse saído de casa ontem. Não era mais o pau de arara que o levava e
trazia da cidade. A poeira vermelha agora cobria seus caros sapatos, e não mais
os pés descalços de menino. Homem feito, não mais pisava aquele solo com a cerimônia
de quem caminha sobre seu sustento. Aquelas miudezas da vida haviam saído dele
como a terra é lavada dos pés. E ele não se arrependia... mas não esquecera o
que havia dito à sua mãe, com lágrimas nos olhos, quando saiu de casa aos
quinze anos:
- Eu volto um dia, mãe... mas volto mudado.
Volto aqui pela senhora. Só não me peça pra ficar...
Aquele era o dia de sua
volta. Não como o menino que saíra com lágrimas de raiva nos olhos... e sim mudado
no homem feito, que não reconhecia mais a terra como a Mãe de tudo aquilo que
ele era, mas decidira não ser mais. Os sons das árvores já não lhe traziam a
mesma sensação de liberdade. Os mais de trinta anos na cidade tiraram dele o último
grão de pó vermelho sobre sua alma... E ele não se reconhecia mais naquela
terra.
A casa já não parecia
mais tão grande como um dia foi. Sua família, apesar de pobre, era considerada
uma das mais abençoadas da região: o solo nunca trincava, os animais nunca
morriam, as plantações sempre prosperavam. O povo do vilarejo ao lado
acreditava que seus ancestrais sabiam conversar com a natureza, ouvir o chamado
do vento e acarinhar com alento as necessidades da terra. Eram pobres, mas
consideravam-se afortunados. E essa não era a opinião dele... Por isso decidiu
ir embora. No entanto, não poderia se esquecer da promessa feita à sua mãe: voltaria
por ela. E era exatamente o que fazia ali, terras sobre os sapatos, naquele
dia. Não por vontade própria... Mas por que recebera um telegrama de seu pai.
A casa parecia vazia.
Poucos móveis, vários retratos pendurados nas paredes, um para cada membro de
cada geração. Não deu muita atenção a eles, como se não quisesse se lembrar. A
única coisa que lembrava é que, quando algum ente querido falecia, o seu retrato
era retirado da parede ao lado da porta de entrada e colocado na parede sob a
qual jazia um altar.
Buscou em volta por um
olhar conhecido. No pomar, algumas crianças corriam e brincavam alegremente,
alheias à sua presença. A paisagem parecia intocável; sentia como se houvesse
uma barreira invisível entre aquele ambiente e ele. Por um momento, pensou em
virar-se e ir embora. Mas, ao fundo, um coro de vozes parecia entoar uma
mensagem...
- Entre, meu filho. Que
bom que recebeu meu telegrama.
Ouviu a voz rouca de seu
pai falar de um lugar escuro da sala. Ele olhava para fora da porta que dava
para a varanda aos fundos da casa. Parecia ter nas mãos algum objeto, que
segurava como a um tesouro.
- Claro que recebi...
Mas não entendi por que me chamou aqui, hoje.
O pai engoliu antes de
falar.
- Você prometeu que um dia
voltaria para sua terra, para sua casa... mas mudado. E também falou para a
gente não pedir pra você ficar...
- Sim, meu pai. Eu me
lembro muito bem do que disse.
O pai nada falou. Apenas
continuou a alisar o objeto. Olhou para fora, onde as crianças brincavam, e
cantarolou a música que o coro entoava no fundo do quintal. A atmosfera parecia
de festa, de honra, de celebração. Mas a casa estava estranhamente escura. Era
fim de tarde, e nenhuma vela ainda havia sido acesa. Sua mãe tinha sempre o
costume de acender todas as velas da casa ao cair da tardinha para que a luz
nunca faltasse, a começar pela luz do altar.
Ele se virou para
confirmar se o altar ainda existia... Lá estava ele. Imagens de santos, fotos
de parentes, flores... Tudo em seu lugar. Com apenas uma vela acesa.
Os pássaros da noite
começavam a piar em seus ninhos, chamando seus filhos de volta... Foi quando
algo se acendeu dentro dele. Apesar de ter recusado suas origens, era
impossível não ser tocado mais uma vez por aquela atmosfera. Ouviu, ao longe, a
voz de sua mãe chamando-o para entrar e ajudar a incendiar a luz interna. Sua
família o havia ensinado a preservar a luz de dentro intacta, ainda que nenhuma
luz fosse vista do lado de fora. Aquela luz nunca podia se apagar. E se ele
tivesse aquela luz queimando eternamente, sempre poderia se lembrar de quem
era.
A luz se acendeu
novamente dentro dele... E ele pôde compreender. Caminhou vagarosamente até seu
pai, enquanto falava:
- Eu disse que voltaria
pela minha mãe.
- Sim, meu filho... pela
sua mãe.
Ao se aproximar, mesmo
com a pouca luz, pôde ver o que era o objeto nas mãos de seu pai. Um vento
soprou forte para dentro da casa, apagando a vela do altar. Olhou para a parede
ao lado da porta de entrada, onde estavam os retratos da família. Retirou com
reverência o objeto das mãos de seu pai, caminhou até o altar, pendurou o retrato e acendeu a vela que se apagara.
Uma por uma, acendeu as
velas da casa até que todas estivessem acesas. Fechou as janelas para que o
vento não as apagasse. Era preciso manter a luz interna acesa, sempre, seja
qual fosse a ocasião. Sentia que estava pronto para reassumir o lugar que lhe
cabia naquele contexto.
- O coro já está
cantando, meu filho. É hora de liberar o cortejo.
Voltou até onde estava o
pai e o ajudou a se levantar, sem dizer uma palavra sequer. Pegou-o pelo braço
e seguiram juntos até onde estava o corpo de sua mãe, envolto em flores,
crianças, cantigas e luz... muita luz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário