Tropeçou
grosseiramente, em meio ao breu, no objeto cúbico mal posicionado atrás da
porta do quarto dos fundos. A topada certeira acometeu o dedo mindinho, o que
fez com que soltasse um palavrão de desabafo - como se maldizer o ocorrido
fosse amenizar a dor.
Já não
tinha mais a quem culpar pela desorganização da casa ou por caixas pesadas esquecidas
atrás da porta do lugar onde estavam vela e fósforos. Tão pouco maldizer o
passado faria o sofrimento ir embora. Um passado não tão próximo como a topada
no dedo mindinho, nem tão distante quanto o início daquele grande amor. Um amor
que durara anos, em meio a palavras de amor e palavrões.
Por
sorte, encontrou uma lanterna ao invés da vela e dos fósforos. A lanterna
ajudaria a manter o foco no que fora ali fazer. Por certo a vela teria trazido
memórias que preferia não acessar. A tempestade desabava sobre a cidade no
início da noite, e não era mais possível ouvir nada além dos trovões, do som da
água caindo e os próprios pensamentos.
Após um
ano completo, pensava já ter se livrado da dor. Aquele era um mundo no qual se
cobrava força, coragem e paz de espírito, apesar dos pesares. Sempre fora uma
figura forte, com passos firmes que nunca tropeçavam. Naquela noite, tropeçou
desajeitadamente na maldita caixa atrás da porta. Lembrou-se, com certo
sofrimento, de que deixara pegadas marcadas demais sobre aquela história. Como
se tivesse pisado sobre seus sonhos, sobre os sonhos dos dois e sobre a
possibilidade de realização de qualquer deles. Era um fardo pesado demais para
carregar, mas o mundo lhe cobrava a resiliência. Não foi fácil, mas em apenas
três meses era como se aquele grande amor nunca tivesse acontecido. “Outros
amores virão”, era a frase que ouvia repetidamente daquele mundo que achava que
tudo sabia. Não queria outros amores... Queria simplesmente amar-se naquele
momento.
Não
pensava que a culpa fosse totalmente sua. Não era. Talvez não houvesse culpa.
Talvez houvesse apenas cobranças demais e amor de menos. Não, o amor era
suficiente... mas cada um fora incapaz de deixar de olhar para as próprias
pegadas e entender que, na verdade, o importante era apenas caminhar juntos.
Sacudiu
a cabeça e chutou a caixa, como se para espantar aqueles pensamentos. Com o
choque, a lanterna soltou-se da mão, caindo com seu foco sobre a caixa. Teve de
abaixar-se para pegá-la, ficando cara a cara com o objeto. A tempestade ainda
abafava todos os sons da cidade, e pôde ouvir claramente dentro de si: Abra-a.
Como se uma enxurrada estivesse prestes a carregar tudo, agarrou-se à caixa
como se disso dependesse sua sobrevivência. Abriu-a em apenas um segundo...
Em um
segundo, quilos de passado revelaram-se ante seus olhos. Algo que havia sido
esquecido há tanto tempo, e que remetia ao início de todos os seus medos, seus
anseios e seus desejos. A caixa, estranhamente esquecida atrás de uma porta,
estava repleta de cartas escritas há muitos anos.
Não se
lembrava de ter escrito tantas cartas naqueles anos de relacionamento. Perguntou-se
por que elas não foram divididas na separação, ou sumariamente queimadas em
latas de tinta – a mesma tinta usada para cobrir escritos de amor nas paredes. Não
havia razão para estarem ali, intactas, convictas, resolutas. Depois de tantos
anos de pegadas sobre sonhos, havia deixado aqueles para trás. A curiosidade
foi maior do que o medo de revirar aquele baú metafórico de memórias. Vasculhou
as cartas com o cuidado de quem manuseia um tesouro.
Não
eram cartas de amor, como esperava. Eram cartas que descreviam todos os
sentimentos que tivera em cada um dos seus relacionamentos. Cartas endereçadas a
alguém em quem acreditava, revelando segredos que nunca poderiam ser remetidos.
Uma carta toda primeira segunda-feira de cada mês... Reveladas em um segundo.
A
tempestade fora se tornou tempestade dentro. A enxurrada de sentimentos levou
embora a falsa pretensão de força e coragem. Nunca em sua vida pensou conseguir
tamanha sinceridade consigo. Chorou lágrimas de anos em que brigara com as
próprias atitudes, em que evitara entrar em contato com a própria dor por meio
de alguns palavrões falados ao vento e outros tantos chutes no desconhecido.
A água
do céu tornou-se música, enquanto sua sinfonia ia aos poucos cessando em
pianíssimo. A água do coração ainda jorrava através dos olhos, lavando
expectativas não cumpridas. Ao dobrar e envelopar a última carta, olhou pela
janela e sorriu. Correu como uma criança travessa à busca de papel e caneta, e
escreveu em quase um segundo sob o foco da lanterna, sem se dar conta de que a
cidade já se iluminava.
Escreveu
e assinou. E pensou: “Esta será remetida.”
E
dobrando-a em forma de avião, fez com que seus sonhos alçassem voo pela janela.
Lindo conto, Capucci!
ResponderExcluirGostei do jeito de sonho, meio delirado e relembrado da ambientação.
APROVADO! :-)