Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


sexta-feira, 15 de março de 2013

Needle & Thread - The Reign of Kindo


Já era muito mais de meia-noite e ele não conseguia dormir... por uma semana. Talvez mais. Não tinha parado para contar os dias... a única coisa que sabia é que sua vida tinha mudado completamente desde aquela noite.
    Aquela maldita noite... Aquela bendita, bendita noite...”
Apesar de tudo – a falta de descanso, a cama bagunçada pelo revirar incessante do corpo insone, até os olhos fundos que nunca tivera – ele sabia que a vida que antes tinha, antes daquela noite, não o satisfazia mais. Até mesmo aquela insônia aparentemente sem fim era mais aconchegante, mais benigna do que o arrastar-se daquela vida amorfa que levava.

Não parecia mais ele há muito tempo... antes. Procurava respostas nos lugares errados, com as pessoas erradas, em pernas misturadas a lençóis que nada tinham a ver com as sensações e os desejos que ele buscava. Não que ele não gostasse de transitar por aquele mundo que conhecia bem, e que fora seu companheiro durante tantos anos. Era um lugar confortável... Não se apegar, não se envolver, não precisar dizer muito mais que meias palavras, palavras meia-boca e meios-termos. Um copo de bebida, alguns trocos sobre a mesa, e quem sabe ele não passaria mais uma noite sozinho, nem mais uma noite vigiando o relógio.

Mas... não. Aquela era uma noite de segunda-feira. E já passava da meia-noite. E já se iam muitas noites inteiras... e mais uma noite e meia novamente perdida. Nem palavras, nem beijos... e apenas ele para bagunçar lençóis que não se misturavam há muito tempo a outras pernas que não as dele mesmo.

Levantou-se, debruçou-se sobre a janela. Deixou que a brisa noturna o fizesse recobrar a razão.

Não!”...

Mas já não parecia possível desligar-se. Pensou em vestir-se e sair, esquecer por um momento que teria de estar de pé para trabalhar em poucas horas. O céu ainda era feito de total breu, então não se preocupou tanto. Talvez ainda tivesse algum tempo... As estrelas nunca haviam lhe parecido tão imensas em sua distância, velando o sono dos humanos... E ele, acordado, revelava em sua mente apenas uma imagem. Já não era capaz de desprender-se de si mesmo, afogar-se naquela vida prática e um tanto vazia, que não fazia diferença, mas também não incomodava... As noites eram perdidas de uma forma muito mais divertida. Então, o que havia de errado naquilo tudo?... E...

O que há de errado comigo?”

A mesma pergunta que fazia todas as noites, há uma semana... Talvez mais. Depois de tanto tempo, depois de todo o automatismo confortável que construíra como uma carapaça para se proteger de sentir, para se proteger do que ele sabia que existia, mas não conhecia, depois de todo aquele trabalho de superficialidade... Veio aquela noite. Uma noite parecida com essa... com algumas estrelas no céu, vigiando o sono da maioria dos humanos, enquanto a lua nova sorria para aqueles que permaneciam lúcidos para observar seu espetáculo.

Ele se lembrava como se fosse aquela noite: seu vulto, ligeiramente prateado pelo sorriso no céu, não era diferente de nenhum outro que havia conhecido. Não era diferente de nenhum outro dos que ocupavam o restante das mesas. Um vulto sozinho, um vulto que não gesticulava, e que parecia apenas observar como ele mesmo fazia. Aproximou-se como um gato que caminha sobre o muro, para não perturbar a cena. Pensou em usar uma das suas frases de efeito, que sempre encaminhavam vultos para os seus lençóis sem muita dificuldade.

Não teve tempo de abrir a boca para falar meias palavras, em meios-termos. O vulto virou-se como se sentisse seu perfume no vento. Olhou com olhos felinos. Indicou a cadeira vazia. E ele não conseguiu falar mais nada, durante todo o restante da noite. Apenas ouviu e ouviu, como nunca fizera em toda sua vida. Viu, sem pressa e sem tédio, o horizonte clarear em tons azulados, enquanto a lua nova despedia-se com o mesmo sorriso. E o sorriso na terra era como o sorriso lunar. O vento sorria, as árvores sorriam, a cidade toda sorria... E ele sorriu por mais uma semana. Até aquela noite, em que já não dormia mais.
Lá fora começava a chover. Vigiou o relógio.

Merda de relógio. Só pode estar quebrado!”

E, com um golpe certeiro na parede branca, o relógio despedaçou-se. E ele vestiu o que achava ser um casaco, naquele escuro. E calçou o que achava ser um tênis.

Desceu as escadas, com pressa de esperar o elevador. Saiu correndo pelas ruas como um gato assustado, tropeçando em poças, desviando de postes, fugindo de cachorros vadios. Fez a pé o caminho de volta para o local do encontro. Trôpego, ingênuo, ansioso, arfante como nunca antes. Algo dentro dele estilhaçara como o relógio na parede, e o tempo já não existia. Não era mais meia-noite de uma segunda-feira... Era a hora do reencontro.

E lá estava o vulto que sorria. E ele pôde sorrir também, depois de uma semana... Talvez mais. Estava encharcado de chuva e felicidade. Um sentimento que o tirara do automatismo das frases de efeito, das meias palavras, beijos em meias-bocas e sexo em meios-termos. Não sabia ainda o que era aquilo, só sabia que não queria mais voltar atrás...

Sorriam um para o outro, em um tempo que não era um tempo... sobre promessas que não seriam feitas, e mesmo assim seriam cumpridas. Estava encharcado pela chuva, e foi como um bálsamo poder ouvir de novo, em silêncio, sem falar uma palavra sequer.

Na sua boca, só um sorriso que pretendia ser eterno. E a chuva sorria em toda a cidade. 

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