Já era muito mais de meia-noite e ele
não conseguia dormir... por uma semana. Talvez mais. Não tinha
parado para contar os dias... a única coisa que sabia é que sua
vida tinha mudado completamente desde aquela noite.
“Aquela
maldita noite... Aquela bendita, bendita noite...”
Apesar de tudo – a falta de descanso,
a cama bagunçada pelo revirar incessante do corpo insone, até os
olhos fundos que nunca tivera – ele sabia que a vida que antes
tinha, antes daquela noite, não o satisfazia mais. Até mesmo aquela
insônia aparentemente sem fim era mais aconchegante, mais benigna do
que o arrastar-se daquela vida amorfa que levava.
Não parecia mais ele há muito tempo...
antes. Procurava respostas nos lugares errados, com as pessoas
erradas, em pernas misturadas a lençóis que nada tinham a ver com
as sensações e os desejos que ele buscava. Não que ele não
gostasse de transitar por aquele mundo que conhecia bem, e que fora
seu companheiro durante tantos anos. Era um lugar confortável... Não
se apegar, não se envolver, não precisar dizer muito mais que meias
palavras, palavras meia-boca e meios-termos. Um copo de bebida,
alguns trocos sobre a mesa, e quem sabe ele não passaria mais uma
noite sozinho, nem mais uma noite vigiando o relógio.
Mas... não. Aquela era uma noite de
segunda-feira. E já passava da meia-noite. E já se iam muitas
noites inteiras... e mais uma noite e meia novamente perdida. Nem
palavras, nem beijos... e apenas ele para bagunçar lençóis que não
se misturavam há muito tempo a outras pernas que não as dele mesmo.
Levantou-se, debruçou-se sobre a janela.
Deixou que a brisa noturna o fizesse recobrar a razão.
“Não!”...
Mas já não parecia possível
desligar-se. Pensou em vestir-se e sair, esquecer por um momento que
teria de estar de pé para trabalhar em poucas horas. O céu ainda
era feito de total breu, então não se preocupou tanto. Talvez ainda
tivesse algum tempo... As estrelas nunca haviam lhe parecido tão
imensas em sua distância, velando o sono dos humanos... E ele,
acordado, revelava em sua mente apenas uma imagem. Já não era capaz
de desprender-se de si mesmo, afogar-se naquela vida prática e um
tanto vazia, que não fazia diferença, mas também não
incomodava... As noites eram perdidas de uma forma muito mais
divertida. Então, o que havia de errado naquilo tudo?... E...
“O que há de errado comigo?”
A mesma pergunta que fazia todas as
noites, há uma semana... Talvez mais. Depois de tanto tempo, depois
de todo o automatismo confortável que construíra como uma carapaça
para se proteger de sentir, para se proteger do que ele sabia que
existia, mas não conhecia, depois de todo aquele trabalho de
superficialidade... Veio aquela noite. Uma noite parecida com essa...
com algumas estrelas no céu, vigiando o sono da maioria dos humanos,
enquanto a lua nova sorria para aqueles que permaneciam lúcidos para
observar seu espetáculo.
Ele se lembrava como se fosse aquela
noite: seu vulto, ligeiramente prateado pelo sorriso no céu, não
era diferente de nenhum outro que havia conhecido. Não era diferente
de nenhum outro dos que ocupavam o restante das mesas. Um vulto
sozinho, um vulto que não gesticulava, e que parecia apenas observar
como ele mesmo fazia. Aproximou-se como um gato que caminha sobre o
muro, para não perturbar a cena. Pensou em usar uma das suas frases
de efeito, que sempre encaminhavam vultos para os seus lençóis sem
muita dificuldade.
Não teve tempo de abrir a boca para
falar meias palavras, em meios-termos. O vulto virou-se como se
sentisse seu perfume no vento. Olhou com olhos felinos. Indicou a
cadeira vazia. E ele não conseguiu falar mais nada, durante todo o
restante da noite. Apenas ouviu e ouviu, como nunca fizera em toda
sua vida. Viu, sem pressa e sem tédio, o horizonte clarear em tons
azulados, enquanto a lua nova despedia-se com o mesmo sorriso. E o
sorriso na terra era como o sorriso lunar. O vento sorria, as árvores
sorriam, a cidade toda sorria... E ele sorriu por mais uma semana.
Até aquela noite, em que já não dormia mais.
Lá fora começava a chover. Vigiou o
relógio.
“Merda de relógio. Só pode estar
quebrado!”
E, com um golpe certeiro na parede
branca, o relógio despedaçou-se. E ele vestiu o que achava ser um
casaco, naquele escuro. E calçou o que achava ser um tênis.
Desceu as escadas, com pressa de esperar
o elevador. Saiu correndo pelas ruas como um gato assustado,
tropeçando em poças, desviando de postes, fugindo de cachorros
vadios. Fez a pé o caminho de volta para o local do encontro.
Trôpego, ingênuo, ansioso, arfante como nunca antes. Algo dentro
dele estilhaçara como o relógio na parede, e o tempo já não
existia. Não era mais meia-noite de uma segunda-feira... Era a
hora do reencontro.
E lá estava o vulto que sorria. E ele
pôde sorrir também, depois de uma semana... Talvez mais. Estava
encharcado de chuva e felicidade. Um sentimento que o tirara do
automatismo das frases de efeito, das meias palavras, beijos em
meias-bocas e sexo em meios-termos. Não sabia ainda o que era
aquilo, só sabia que não queria mais voltar atrás...
Sorriam um para o outro, em um tempo que não era um tempo... sobre
promessas que não seriam feitas, e mesmo assim seriam cumpridas.
Estava encharcado pela chuva, e foi como um bálsamo poder ouvir
de novo, em silêncio, sem falar uma palavra sequer.
Na sua boca, só um sorriso que pretendia ser eterno. E a chuva sorria em toda a cidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário