Sua respiração estava
ofegante...
O sol do meio-dia castigava
impiedosamente a pele já ressecada, como punhais que perfuram a carne sem se
dar conta. O ar seco piorava a sensação dolorosa, e o hálito quente clamava por
uma gota de chuva sequer. Mas não era época de chuva... E o solo rachava como
escamas de serpente... Envenenando vagarosamente suas esperanças de sobreviver.
Ele havia lhe trazido
tão longe quanto pôde. Havia sido seu único companheiro durante toda a viagem,
depois de terem sido expulsos de suas terras pelos jagunços sanguinários dos
grandes coronéis. Não sabia ao certo quantos quilômetros tinham caminhado, em busca de alguma sombra e qualquer gole de água. Naquela época, o solo do sertão
era mais inóspito do que o do deserto... pois nunca guardava lembranças da fartura.
O do sertão, pelo contrário, carregava memórias vivas daquela gente sofrida,
cheia de calos nos pés, um punhado de sonhos e muitas esperanças.
Teve que deixar seu
amigo à própria sorte, pois esse já não tinha forças para continuar. Ele seguiu
então sozinho, cambaleante, à procura de alguma alma solidária que lhe desse
comida e água. Haviam perdido tudo que tinham... Os jagunços incendiaram sua
casa e toda sua pequena plantação, já sôfrega. A colheita... feita com suas
próprias mãos e da forma natural como seu pai o havia ensinado, fora totalmente
confiscada. Nenhum grão de nada... nenhum teto sob o qual dormir... nenhuma
lembrança sob a qual se abrigar. Todos os seus sonhos haviam sido usurpados,
arrancados de dentro de si como se não tivesse o direito de sonhar.
Lembrava-se que foi seu
amigo que o avisou da chegada do perigo. Os jagunços se aproximaram
sorrateiramente, silenciosos como urubus sobre carniça. Se não fosse o alarme
de seu querido amigo, eles o teriam atacado como a ave de rapina ataca o
calango desavisado em seu banho de sol. Saiu à varanda armado na tentativa de
poder reagir... naquelas terras era preciso. Matar ou morrer. E, se não fosse o
seu amigo, ele jamais teria tido a oportunidade de livrar-se do toque da morte.
Saíram em disparada por
caminhos desconhecidos. Seu amigo quase foi mortalmente ferido, mas seguiu
corajosamente. Correram o quanto puderam, e a noite caiu. Não pararam sequer
para beber água, e o frio do sertão era pior que o frio do deserto... pois desafiava
as esperanças.
Sentiram suas forças
abandonando a vida ao se darem conta da lua minguante no céu. O caminho era
mais escuro que de costume... E o cansaço, a fome, a sede e a tristeza
escureciam ainda mais a visão. Já não era mais possível saber para onde iam, ou
qual caminho deveriam seguir. O conhecimento que tinham da região de repente
tornou-se uma memória remota e vaga, e aos poucos ambos começaram a sucumbir ao
destino... Seu amigo deixou-se cair sobre o chão de serpente, e ele entendeu
que era hora de descansar.
Acordaram com o sol a
romper o frio da noite, estendendo seus primeiros raios por sobre os corpos dos
dois. Ele se levantou com dificuldade, motivado pela necessidade de continuar
encarnado naquela terra. O vento soprava forte do leste, o que impunha ainda
mais desgaste aos seus movimentos. Olhou para o lado e viu seu amigo ainda
deitado, respirando de forma curta e irregular, no que percebeu que não seria
possível para ele continuar caminhando.
Aproximou-se de seu
amigo, deu-lhe um abraço de coragem e disse:
- Fique vivo, meu
amigo... Voltarei para lhe buscar.
E continuou a caminhada,
sem saber ao certo se não sucumbiria à força do vento, ao calor e ao cansaço.
Só que agora não podia desistir... por si mesmo, e por seu amigo.
Alguns quilômetros à
frente pôde ver uma pequena construção de barro, perto da qual brincavam
algumas crianças. Andou, em esforço máximo, até conseguir chegar perto. Elas
pararam sua brincadeira e o olharam assustadas. Não foi possível falar...
Deixou-se cair pesadamente sobre a terra de serpente, tal qual seu amigo.
Quando deu por si, havia
sido socorrido pela família que ali morava. Deram a ele parte da pouca água e
do pouco estoque de comida que tinham. Ele, então, explicou-lhes o que
aconteceu... e insistiu que precisava voltar para buscar seu amigo.
O homem e a mulher entreolharam-se.
- Ninguém sobrevive sem
água nem comida debaixo desse sol. – disse a mulher. - À essa altura, ele já deve
estar...
- Não! – interrompeu aquela
fala insolente. – Meu amigo está vivo, e eu vou buscá-lo!
- Espere, homem... –
disse seu outro salvador. – Você não vai aguentar sozinho... Se insiste
tanto em buscar esse seu amigo, vou com você.
E ele saiu, revigorado, de
volta ao local onde seu amigo descansava.
Ao chegar, desceu da
carroça e aproximou-se de seu amigo com urgência. O corpo, agora inerte, não parecia
mais conter vida.
Ele se ajoelhou pesadamente sobre o solo do sertão, mais impiedoso que o do deserto... pois levara a alma de seu querido amigo...
Debruçou-se sobre o
dorso do animal, um belo cavalo marrom escuro, e tirou de si o último gole de
esperança que tinha para chorar aquela morte. E até o vento, o
sol e o solo escamado como serpente curvaram-se ante a dor no coração daquele
sertanejo...
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