Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


domingo, 24 de março de 2013

Cantiga de amigo - Cantoria (Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai)


Sua respiração estava ofegante...

O sol do meio-dia castigava impiedosamente a pele já ressecada, como punhais que perfuram a carne sem se dar conta. O ar seco piorava a sensação dolorosa, e o hálito quente clamava por uma gota de chuva sequer. Mas não era época de chuva... E o solo rachava como escamas de serpente... Envenenando vagarosamente suas esperanças de sobreviver.

Ele havia lhe trazido tão longe quanto pôde. Havia sido seu único companheiro durante toda a viagem, depois de terem sido expulsos de suas terras pelos jagunços sanguinários dos grandes coronéis. Não sabia ao certo quantos quilômetros tinham caminhado, em busca de alguma sombra e qualquer gole de água. Naquela época, o solo do sertão era mais inóspito do que o do deserto... pois nunca guardava lembranças da fartura. O do sertão, pelo contrário, carregava memórias vivas daquela gente sofrida, cheia de calos nos pés, um punhado de sonhos e muitas esperanças.

Teve que deixar seu amigo à própria sorte, pois esse já não tinha forças para continuar. Ele seguiu então sozinho, cambaleante, à procura de alguma alma solidária que lhe desse comida e água. Haviam perdido tudo que tinham... Os jagunços incendiaram sua casa e toda sua pequena plantação, já sôfrega. A colheita... feita com suas próprias mãos e da forma natural como seu pai o havia ensinado, fora totalmente confiscada. Nenhum grão de nada... nenhum teto sob o qual dormir... nenhuma lembrança sob a qual se abrigar. Todos os seus sonhos haviam sido usurpados, arrancados de dentro de si como se não tivesse o direito de sonhar.

Lembrava-se que foi seu amigo que o avisou da chegada do perigo. Os jagunços se aproximaram sorrateiramente, silenciosos como urubus sobre carniça. Se não fosse o alarme de seu querido amigo, eles o teriam atacado como a ave de rapina ataca o calango desavisado em seu banho de sol. Saiu à varanda armado na tentativa de poder reagir... naquelas terras era preciso. Matar ou morrer. E, se não fosse o seu amigo, ele jamais teria tido a oportunidade de livrar-se do toque da morte.

Saíram em disparada por caminhos desconhecidos. Seu amigo quase foi mortalmente ferido, mas seguiu corajosamente. Correram o quanto puderam, e a noite caiu. Não pararam sequer para beber água, e o frio do sertão era pior que o frio do deserto... pois desafiava as esperanças.

Sentiram suas forças abandonando a vida ao se darem conta da lua minguante no céu. O caminho era mais escuro que de costume... E o cansaço, a fome, a sede e a tristeza escureciam ainda mais a visão. Já não era mais possível saber para onde iam, ou qual caminho deveriam seguir. O conhecimento que tinham da região de repente tornou-se uma memória remota e vaga, e aos poucos ambos começaram a sucumbir ao destino... Seu amigo deixou-se cair sobre o chão de serpente, e ele entendeu que era hora de descansar.

Acordaram com o sol a romper o frio da noite, estendendo seus primeiros raios por sobre os corpos dos dois. Ele se levantou com dificuldade, motivado pela necessidade de continuar encarnado naquela terra. O vento soprava forte do leste, o que impunha ainda mais desgaste aos seus movimentos. Olhou para o lado e viu seu amigo ainda deitado, respirando de forma curta e irregular, no que percebeu que não seria possível para ele continuar caminhando.

Aproximou-se de seu amigo, deu-lhe um abraço de coragem e disse:

- Fique vivo, meu amigo... Voltarei para lhe buscar.

E continuou a caminhada, sem saber ao certo se não sucumbiria à força do vento, ao calor e ao cansaço. Só que agora não podia desistir... por si mesmo, e por seu amigo.

Alguns quilômetros à frente pôde ver uma pequena construção de barro, perto da qual brincavam algumas crianças. Andou, em esforço máximo, até conseguir chegar perto. Elas pararam sua brincadeira e o olharam assustadas. Não foi possível falar... Deixou-se cair pesadamente sobre a terra de serpente, tal qual seu amigo.

Quando deu por si, havia sido socorrido pela família que ali morava. Deram a ele parte da pouca água e do pouco estoque de comida que tinham. Ele, então, explicou-lhes o que aconteceu... e insistiu que precisava voltar para buscar seu amigo.

O homem e a mulher entreolharam-se.

- Ninguém sobrevive sem água nem comida debaixo desse sol. – disse a mulher. - À essa altura, ele já deve estar...

- Não! – interrompeu aquela fala insolente. – Meu amigo está vivo, e eu vou buscá-lo!

- Espere, homem... – disse seu outro salvador. – Você não vai aguentar sozinho... Se insiste tanto em buscar esse seu amigo, vou com você.

E ele saiu, revigorado, de volta ao local onde seu amigo descansava.

Ao chegar, desceu da carroça e aproximou-se de seu amigo com urgência. O corpo, agora inerte, não parecia mais conter vida.

Ele se ajoelhou pesadamente sobre o solo do sertão, mais impiedoso que o do deserto... pois levara a alma de seu querido amigo...

Debruçou-se sobre o dorso do animal, um belo cavalo marrom escuro, e tirou de si o último gole de esperança que tinha para chorar aquela morte. E até o vento, o sol e o solo escamado como serpente curvaram-se ante a dor no coração daquele sertanejo...

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