Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


sábado, 30 de março de 2013

Through Glass - Stone Sour


Corria para poder alcançar o que parecia inalcançável. Nem mesmo o vento contrário podia impedi-la em sua intenção de chegar antes do tempo, sobrevoar a cidade com os pés de Zéfiro...

Sabia que havia outros meios melhores de conseguir chegar, que a levariam além das próprias intenções, mas não conseguia mais pensar... somente sentir o aperto que a deixava quase sem ar. Tinha que correr para poder respirar, correr para continuar vivendo. Não podia e nem queria conter aquele sentimento arrebatador que a tomava por completo.

Não sabia o que aconteceria depois. Talvez aquela não fosse a melhor maneira, ou talvez tivesse sido melhor deixar as coisas como estavam. Algumas palavras rudes, algumas fotos jogadas ao vento do sexto andar... E já não teria mais aquela paz que antes tivera, de poder ver roupas e vinis jogados pelo chão. A paz de estar sozinha, aquela paz que ela tanto quisera durante os últimos meses, agora parecia uma faca apunhalando-a pelas costas. Não era o que queria... Será que era melhor deixar as coisas como estavam?...

Pensava... e corria. Não era possível parar de correr. As pernas já seguiam sozinhas em direção ao aeroporto. Esquecera as chaves do carro e do apartamento vazio. A mobília fria, sem o calor dos corpos quentes de desejo em noites de outono, falava verdades que ela não queria ouvir. Não tinha sido culpa de ninguém, cada um fizera o que podia. Cada um agira de acordo com seus medos escondidos, esquecendo-se que em algum ponto do meio estava o amor que cultivavam há pouco mais de dois anos. Cada qual com suas feridas abertas, sangrando sobre letras de músicas que não eram sua trilha sonora. Pararam de enxergar um ao outro para ver apenas a si mesmos e sua culpa... Mas não tinha sido culpa de ninguém.

O vento soprava ainda mais forte. No horizonte uma tempestade prateada se formava. A vontade de Zéfiro a levava para frente... e ela sabia que chegaria, nem que fosse em pedaços. Pequenos pedaços não recolhidos de si mesma. Não havia outro lugar que queria estar a não ser naqueles braços que conhecia tão bem e ainda queria. Braços que reconheceria pelo calor, pelo toque e pela intenção dentre milhões de outros. Os que ela queria...

O vento soprava tão forte quanto naquela tarde em que levara embora as imagens impressas de memórias que ela conhecia tão bem... Mas que não queria mais.

Tinha que correr para continuar respirando... respirar para continuar vivendo. Ainda que seu corpo estivesse preparado para o esforço, a emoção conferia uma dificuldade a mais que quase lhe turvava a visão. Não sabia se chegaria... E, se não chegasse, perderia para sempre o que tanto queria. Olhos, lábios, cabelos, braços... uma vida ainda não ocorrida, jogada pelo sexto andar. Uma força descomunal a empurrava para frente, propulsionando-a como um míssil. Zéfiro e ela já eram um só...

Chegou ao aeroporto ainda correndo... ainda respirando. Em um só pedaço colhido de si mesma. Mas sabia que uma parte dela poderia partir a qualquer momento... E ela se partiria em pedaços.

Não pensava, apenas corria. Sequer se deu conta do rebuliço que causara atrás de si. Algumas pessoas a seguiram... Mas ela e Zéfiro já eram um só, e ninguém conseguia alcançá-la... seria como alcançar o inalcançável.

Chegou até a janela que dava para a pista... e foi com desespero que pôde ver o avião partindo. Parte de si mesma partiu-se em milhares de pedaços. Não sabia se os recolheria...

Apoiou-se sobre o vidro e sentiu toda a estafa que a corrida conferia a seu corpo. Ouviu seus perseguidores se aproximando, e foi num gesto de entrega que deixou que a levassem para fora do aeroporto.

Pouco depois, já em um pedaço amargo de si mesma, sentou-se em um ponto onde podia ver as nuvens clareando diante de seus olhos. A chuva fora levada para longe pelo vento que sua corrida produzira. Ela e Zéfiro eram um só...

- Você chegou atrasada.

Dentro dela pedaços se juntavam. Ali estavam os olhos, lábios, cabelos e braços que ela tanto buscara... E tanto queria. Deixou-se jogar e jorrar para dentro dele por meio dos sentidos, sem dar-se conta do tempo.

- Por que você não me disse nada?

- Porque eu sabia que você viria...

- Você não queria ir embora?

Ele tirou os bilhetes de dentro do bolso do sobretudo.

- Você chegou atrasada. – repetiu, e sorriu o sorriso dos lábios que ela tanto queria.

Ela o pegou pela mão e correu até o portão de embarque.

E partiram nas asas de Zéfiro, em um só pedaço.



segunda-feira, 25 de março de 2013

It's Alright - Melissa Otto


Fechou os olhos como se o mundo não pudesse tocá-la. Deu a si mesma aquela pausa, tão necessária, para prestar atenção aos sons e cheiros que ainda não conhecia.

Deitou-se na relva como se a terra que seu corpo tocava fizesse parte dela, até o momento no qual pôde entender que, realmente, não havia diferença... Tudo, naquele momento, fazia parte de uma coisa só.

Há muito sentia uma falta dentro de si mesma que não sabia dizer o que era. Os dias passavam curtos, como se o tempo quisesse engolir suas intenções e seus sonhos por completo... Os esforços já não condiziam com os resultados. Dar os próprios passos em um mundo cheio de cobranças tornou-se algo doloroso. E não tinha sido para isso mesmo que aquele mundo a criara? Para que pudesse seguir com os próprios pés? Mas não, já não era possível. Apressar-se ou atrasar-se havia se transformado em um suplício.

Apenas uma lembrança a confortava. Uma imagem distante e tão próxima de si mesma, que era quase possível tocá-la no infinito. Tão íntima e tão remota como as estrelas vistas todas as noites no céu. Alguém com quem pudesse dividir seus verdadeiros sonhos, anseios e paixões. Uma parte dela que, por estar sempre lá, não dava importância; mas que conservava sua beleza tão única, tão singela, tão... sua.

Aconchegou-se ainda mais na relva, sentindo o tato sobre a pele. Não fazia mais diferença onde estava, em que tempo estava ou onde estaria dali alguns minutos. Tudo que importava era o presente. Sentir-se no presente. Sem expectativas, sem medos, sem ilusões. Sem se dar conta, o som da brisa nas árvores a levou a um estado de transe que nunca antes havia experimentado. Nada que o ser humano era capaz de inventar poderia proporcionar aquilo... Apenas aquele lugar, naquele estado de consciência.

Um riso de criança soou ao seu redor, e ela despertou com um susto. Olhou em volta e viu uma pequena menina, de seus 5 anos, fazendo tranças em seus cabelos. Por alguns segundos, não ousou respirar. Em seguida, ficou preocupada e resolveu se aproximar da menina.

- Olá, querida... Você está perdida?

- Não estou não, sei bem onde estou... E você, está perdida?

Ficou alguns segundos analisando aquela figura que lhe parecia tão familiar, sem ousar retrucar a uma frase tão segura de si. Reparou que tinha flores nos cabelos e uma caixinha de música em seu colo.

Observou com que dificuldade a pequena menina tentava fazer tranças nos próprios cabelos, e resolveu ajudá-la... E essa abriu um sorriso de orelha à orelha.

- Só você mesmo poderia saber exatamente como fazer! – disse a menina, contente.

Olhou em volta e não havia mais ninguém. Pensou em saber onde estariam os pais da menina, mas foi interrompida como se tivesse os pensamentos lidos.

- Não estou perdida, nem sozinha. Este é meu lugar. Mas você me chamou aqui...

- Eu chamei você aqui?

- Sim. Quando desejou se lembrar de quem você era.

Sem avisar, a menina puxou-a pela mão e levou-a até cada uma das lembranças de sua infância... o cheiro das maçãs recém-colhidas do pomar, o balanço de ferro rangendo após a chuva forte, tanques de areia, bonecas de pano, o som do granizo batendo na janela de vidro e os gritos pelo medo do trovão, banhos de piscina e lama, viagens espaciais em foguetes feitos da rede na varanda, cada espetáculo e cada ralado no joelho, entre pular muros e descer ruas de paralelepípedos de bicicleta sem as mãos...

Uma lágrima rolou doída de cada um dos seus olhos.

- Não chore. – disse a menina. – Você não está perdida. É só não se esquecer... E você sempre poderá estar aqui.

E, dando um grande sorriso, deixou que as lágrimas se transformassem em pontes do arco-íris... em cujo fim estava o tesouro de saber quem se é.

Em um passe de mágica, ela acordou de seu transe com a certeza de nunca mais esquecer, ou sempre se lembrar...

A partir dali, caminhou... Mais adulta por ser a criança que sempre seria.

domingo, 24 de março de 2013

Cantiga de amigo - Cantoria (Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai)


Sua respiração estava ofegante...

O sol do meio-dia castigava impiedosamente a pele já ressecada, como punhais que perfuram a carne sem se dar conta. O ar seco piorava a sensação dolorosa, e o hálito quente clamava por uma gota de chuva sequer. Mas não era época de chuva... E o solo rachava como escamas de serpente... Envenenando vagarosamente suas esperanças de sobreviver.

Ele havia lhe trazido tão longe quanto pôde. Havia sido seu único companheiro durante toda a viagem, depois de terem sido expulsos de suas terras pelos jagunços sanguinários dos grandes coronéis. Não sabia ao certo quantos quilômetros tinham caminhado, em busca de alguma sombra e qualquer gole de água. Naquela época, o solo do sertão era mais inóspito do que o do deserto... pois nunca guardava lembranças da fartura. O do sertão, pelo contrário, carregava memórias vivas daquela gente sofrida, cheia de calos nos pés, um punhado de sonhos e muitas esperanças.

Teve que deixar seu amigo à própria sorte, pois esse já não tinha forças para continuar. Ele seguiu então sozinho, cambaleante, à procura de alguma alma solidária que lhe desse comida e água. Haviam perdido tudo que tinham... Os jagunços incendiaram sua casa e toda sua pequena plantação, já sôfrega. A colheita... feita com suas próprias mãos e da forma natural como seu pai o havia ensinado, fora totalmente confiscada. Nenhum grão de nada... nenhum teto sob o qual dormir... nenhuma lembrança sob a qual se abrigar. Todos os seus sonhos haviam sido usurpados, arrancados de dentro de si como se não tivesse o direito de sonhar.

Lembrava-se que foi seu amigo que o avisou da chegada do perigo. Os jagunços se aproximaram sorrateiramente, silenciosos como urubus sobre carniça. Se não fosse o alarme de seu querido amigo, eles o teriam atacado como a ave de rapina ataca o calango desavisado em seu banho de sol. Saiu à varanda armado na tentativa de poder reagir... naquelas terras era preciso. Matar ou morrer. E, se não fosse o seu amigo, ele jamais teria tido a oportunidade de livrar-se do toque da morte.

Saíram em disparada por caminhos desconhecidos. Seu amigo quase foi mortalmente ferido, mas seguiu corajosamente. Correram o quanto puderam, e a noite caiu. Não pararam sequer para beber água, e o frio do sertão era pior que o frio do deserto... pois desafiava as esperanças.

Sentiram suas forças abandonando a vida ao se darem conta da lua minguante no céu. O caminho era mais escuro que de costume... E o cansaço, a fome, a sede e a tristeza escureciam ainda mais a visão. Já não era mais possível saber para onde iam, ou qual caminho deveriam seguir. O conhecimento que tinham da região de repente tornou-se uma memória remota e vaga, e aos poucos ambos começaram a sucumbir ao destino... Seu amigo deixou-se cair sobre o chão de serpente, e ele entendeu que era hora de descansar.

Acordaram com o sol a romper o frio da noite, estendendo seus primeiros raios por sobre os corpos dos dois. Ele se levantou com dificuldade, motivado pela necessidade de continuar encarnado naquela terra. O vento soprava forte do leste, o que impunha ainda mais desgaste aos seus movimentos. Olhou para o lado e viu seu amigo ainda deitado, respirando de forma curta e irregular, no que percebeu que não seria possível para ele continuar caminhando.

Aproximou-se de seu amigo, deu-lhe um abraço de coragem e disse:

- Fique vivo, meu amigo... Voltarei para lhe buscar.

E continuou a caminhada, sem saber ao certo se não sucumbiria à força do vento, ao calor e ao cansaço. Só que agora não podia desistir... por si mesmo, e por seu amigo.

Alguns quilômetros à frente pôde ver uma pequena construção de barro, perto da qual brincavam algumas crianças. Andou, em esforço máximo, até conseguir chegar perto. Elas pararam sua brincadeira e o olharam assustadas. Não foi possível falar... Deixou-se cair pesadamente sobre a terra de serpente, tal qual seu amigo.

Quando deu por si, havia sido socorrido pela família que ali morava. Deram a ele parte da pouca água e do pouco estoque de comida que tinham. Ele, então, explicou-lhes o que aconteceu... e insistiu que precisava voltar para buscar seu amigo.

O homem e a mulher entreolharam-se.

- Ninguém sobrevive sem água nem comida debaixo desse sol. – disse a mulher. - À essa altura, ele já deve estar...

- Não! – interrompeu aquela fala insolente. – Meu amigo está vivo, e eu vou buscá-lo!

- Espere, homem... – disse seu outro salvador. – Você não vai aguentar sozinho... Se insiste tanto em buscar esse seu amigo, vou com você.

E ele saiu, revigorado, de volta ao local onde seu amigo descansava.

Ao chegar, desceu da carroça e aproximou-se de seu amigo com urgência. O corpo, agora inerte, não parecia mais conter vida.

Ele se ajoelhou pesadamente sobre o solo do sertão, mais impiedoso que o do deserto... pois levara a alma de seu querido amigo...

Debruçou-se sobre o dorso do animal, um belo cavalo marrom escuro, e tirou de si o último gole de esperança que tinha para chorar aquela morte. E até o vento, o sol e o solo escamado como serpente curvaram-se ante a dor no coração daquele sertanejo...

sexta-feira, 22 de março de 2013

Jardim da Fantasia (Bem Te Vi) - Paulinho Pedra Azul


Corria pelos campos de algodão com um enorme sorriso no rosto. Não conseguia caber em si de tanta felicidade. Suas pernas corriam como se por conta própria, numa vontade imensa de chegar ao topo do mundo, de voar feito bem-te-vi pelo ar, de migrar para alguma terra dos sonhos que deveria existir mais à frente na colina. Uma sensação de liberdade inexplicável, inexorável, capaz de dar asas a todos os seus desejos.

Era menino na época. Devia ter por volta de seus 12 anos. Como de costume, colocara a flor do algodão na janela de sua casa, na esperança de que ela a abrisse, ao invés de só espiar vagamente através da vidraça e esticar o braço por uma fresta para recolher o presente. Nunca dissera uma palavra, nunca dirigira a ele sequer um olhar. Mesmo assim, todos os dias, ao vir pelo caminho de volta da escola, ele recolhia uma flor de algodão com cuidado e deixava no parapeito daquela janela. A janela que ele esperava um dia ver aberta...

Assim se sucedeu por alguns meses... E ele nunca pensou em desistir. Todos os dias, saía da escola, passava pelos campos de algodão e apanhava, com cuidado, a flor mais bonita. Em seguida, corria o mais rápido que podia até a janela fechada e, delicadamente, colocava ali a flor como se ela fosse de cristal. Uma após a outra... Um dia depois do outro.

Certo dia achou que começava a perder as forças. Já não sabia ao certo se seus esforços eram em vão ou se havia algo maior, tão maravilhosamente maior esperando por ele, que nada mais poderia suplantar. E assim pensando, resolveu trepar na grande árvore da colina próxima à casa dela. Subiu no galho mais alto que conseguiu, observando atentamente as imagens que podia apreender do lado de dentro da janela.

Esperou o máximo que pôde. “Este será o último dia”, pensou ele. E o tempo passou... O sol começou a se pôr no horizonte. Frustrado, começou a descer da árvore como quem recebe a notícia de sua condenação. Antes de colocar os pés no chão resolveu dar uma última olhada para a janela.

Finalmente! Lá estava ela... aberta! Não só aberta, escancarada! O vento soprava forte, e ele pôde ver a imagem dela com cabelos revoltos, tão belos e lépidos como asas de borboletas. Ela não podia vê-lo, então procurou com o olhar e a cabeça por todos os lugares. Mirou o pôr-do-sol com uma expressão triste, pegou um tecido de algodão em suas mãos e, com desgosto, jogou-o longe no chão, e voltou a fechar a janela.

Ele desceu do galho mais baixo da árvore e aproximou-se da casa. Recolheu o tecido do chão... e reparou que era, na verdade, uma grande colcha com apenas um bordado sobre ela: uma flor de algodão.

Sem pensar duas vezes, correu até a janela e bateu com o dorso das mãos sobre a vidraça. Ela estava sentada numa cadeira, de costas para ele, e parecia chorar. Virou-se de sobressalto... e correu para abrir a janela.

- Acho... Acho que isso é seu.

- Não... - disse ela – É seu.

Sorriu. O sol já tinha se posto no horizonte, mas ver seu sorriso foi para ele como ver a estrela da aurora. O mais luminoso e belo dos astros vistos no céu... e na terra, a partir daquele momento. E foi num gesto suave, sob o céu estrelado, que deram seu primeiro beijo.

Sentado no sofá da sala, ele se cobria com a mesma colcha de algodão há quase 50 anos. E não havia nada mais aconchegante do que aquele fino tecido, que lhe cobria não o corpo, mas a alma...

- Venha deitar, querido... Ainda enrolado nessa colcha velha?

- Não é uma colcha velha... É uma lembrança.

- Lembranças não aquecem o coração...

E surgiu, mais uma vez, a estrela da aurora.

- Vamos, venha se deitar comigo... Já é tarde.

- Ainda é cedo...

E beijaram-se, como que pela primeira vez, há quase 50 anos...

quinta-feira, 21 de março de 2013

Against All Odds - Phil Collins


Estava ainda deitada na cama, observando o vento brincar com as folhas das árvores. Não era possível, naquele momento, ouvir os pássaros cantarem a plenos pulmões... A madrugada ainda não impunha o seu despertar. Logo o silêncio seria apenas uma lembrança... Uma lembrança dolorida.

Não desgostava do silêncio. Pelo contrário, ficar deitada, quieta, esperando pelo canto dos pássaros, era um de seus momentos preferidos. Aquele silêncio voluntário, escolhido, cheio de motivos e vazio de razões. Mas esse não... Era o silêncio imposto pela falta de alguém. Por esse motivo, era seu primeiro silêncio por estar inquieta, incompleta, ansiosa.

Tinham se conhecido em um esbarrão desses da vida. Não naqueles de cair papéis sobre o chão, olhando-se nos olhos superficialmente pela falta de graça, trocando desculpas artificiais. Não um esbarrão como esse. Um esbarrão daqueles que não só papéis caem sobre o chão, mas sonhos, planos, expectativas, intenções... E fica tudo ali, exposto, quase que involuntariamente.

O encontro deles havia sido assim. Lembrava-se de ter se sentindo inundada, pela primeira vez, com uma sensação que não sabia de onde vinha. Daquelas que parecem vir da nuca, outras horas da boca do estômago, e outras ainda fazendo levitar os pés. Involuntariamente... Como pura mágica. Aquele tipo de evento tão impressionante que você não ousa questionar.

Após o primeiro encontro, ficaram algum tempo procurando um pelo outro. Ela procurava, mas era ele quem a encontrava... nos mais profundos sentidos, aos quais nem mesmo ela parecia ter acesso. Foi apenas um encontro, um momento e poucas palavras, mas já era possível vislumbrar o que se passava por dentro...

Lembrava-se de ter virado o rosto na outra direção, para não sucumbir ao olhar e fazer papel de boba. Ou, ainda, para não se precipitar demais no que deveria ser apenas mais um encontro. A única coisa que se lembrava depois disso foi sentir a mão dele sobre seu ombro, e de sentir-se inundada em nuca, estômago, pés... e coração. Pela primeira vez...

Foram alguns meses. Alguns meses em que ela aceitou ignorar seu gosto pela solidão. Alguns meses se dando conta da progressão geométrica daquela sensação. Olhares, frases... mas o que ela apreciava mais daquilo tudo era finalmente poder dividir o seu silêncio com alguém. O silêncio de pausas musicais... tão vazias e ao mesmo tempo tão plenas...

Em uma das conversas, lembrava-se de ter confessado:

- Não sabemos quase nada de nós dois...

- Tudo que precisamos saber... – disse ele – Nós já sabemos.

E ela entendia. Tudo que era preciso saber gritava tão forte naqueles silêncios, que era quase ensurdecedor...

E agora o silêncio a incomodava... Não havia mais nada de eloquente nele. Nenhuma respiração para ouvir, um coração a bater, algo que significasse outra vida aliada à sua. As pausas eram infinitas, ficar deitada e quieta era como esperar pelo fim... O fim daquele silêncio.

Finalmente, a cotovia em seu cantar suave e insistente fez com que despertasse de seu devaneio entre os mundos. Virou apenas os olhos, mirando os primeiros raios de sol que vinham lhe incomodar a visão. Apertou os olhos violentamente, enquanto a luz entrava sem pedir licença em seus sentidos.

Vestiu-se, colocou sua bolsa sobre o ombro, trancou janelas e portas como de costume. Desceu pelo elevador com o coração apertado. “Será que ele vem?” A espera nunca lhe pareceu tão longa... mas abreviou sua ansiedade ao constatar que bem à porta do edifício, recostado no portão, lá estava ele. Olhando para a mesma cotovia que cantava insistentemente.

Ela se aproximou vagarosamente, e deixou que seu perfume despertasse os sentidos daquele que a esperava. Ele se virou com o seu sorriso costumeiro. Deram os passos decisivos em direção um do outro...

...E trocaram o abraço de sempre. Com direito a sensações perpassando por nuca, estômago e coração... Numa vontade eterna de não soltar mais... No alçar voo pelo levitar dos pés...

Involuntariamente.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Black Sun - Dead Can Dance


- O que eu faria se o mundo acabasse hoje?

Sorriu sarcasticamente, duvidando das intenções da pergunta feita pelo seu inquisidor do outro lado da parede de espelhos. Seus olhos estavam vendados e as mãos cuidadosamente posicionadas sobre os joelhos. Sabia que um movimento em falso poderia levantar suspeitas a respeito de sua real intenção.

Pouco ou quase nada em si diferia de seu algoz. Podia ouvir respirações como se fossem a sua. Tão perto de seus ouvidos, como o hálito quente do demônio da culpa que rondava naquelas noites frias de inverno.  Não tentava fugir; apenas sorria sarcasticamente. Não havia cronômetro para marcar o tempo de suas reações. Sabia que esperariam por toda a eternidade por aquela resposta.

Pensou em mentir. Pensou que inventar uma história irreal e que satisfizesse o apetite daquela fúria seria mais convincente, mais lógico. Talvez fosse seu passaporte para um dia mais claro, para uma visão sem disfarces. Ainda que não reagisse com o corpo, sabia que seus sorrisos silenciosos suscitavam sentimentos diversos em quem o inquiria.

Aquela questão já tinha sido feita várias vezes... e nunca pensara em responder. Afinal, eram um só. Não havia como não saber, bastava um olhar... Mas seus olhos estavam vendados, não era possível olhar para dentro deles como se fossem uma parede de espelhos.

O metrônomo do universo impôs seus ruídos paulatinamente, marcando o compasso do pensamento, até que tivesse que responder... De uma vez por todas.

- O que eu faria se o mundo acabasse hoje? – repetiu, sem sorrir. – Quantas vezes você já não me fez essa pergunta?... Hoje...

Titubeou por mais alguns segundos, contados no metrônomo.

- Hoje eu responderei.

Não pôde saber as reações. Sua visão estava obscurecida pelo orgulho. Mas era tarde demais para esperar.

- Hoje... Se o mundo acabasse...

E com uma das mãos, antes posicionada sobre os joelhos, começou a retirar a venda, vagarosamente.

- Se o mundo acabasse hoje...

- Eu enfileiraria em pensamento todas as pessoas que já passaram pela minha vida, e diria a cada uma delas o que queria dizer.

-Diria que amo a quem realmente amo. Pediria perdão por não ter conseguido amar. Ouviria súplicas, desculpas.

- Diria que não tenho mágoas, nem más intenções. Que não conto as lágrimas, apenas deixo que sequem ao vento... Que conto o tempo pelas batidas do meu coração...

- Pegaria cada uma pela mão e levaria à porta da minha consciência. Mostraria que não há fechadura, nem segredo. Mas que é preciso bater para entrar...

- Deixaria que cada um visse o que é preciso enxergar... E que há algo para além do fim...

A venda caiu-lhe sobre os joelhos, libertando totalmente a visão. Do outro lado do reflexo, alguém olhava com olhos molhados. Havia escrito o que dizia sobre a parede de espelhos em letras de forma. Não podia mais esperar...

- Não é o fim...

- O que eu faria hoje...

- Se o mundo não acabasse?...

segunda-feira, 18 de março de 2013

Cruzeirinho - Hinos Novos - Mestre Irineu (Santo Daime)


Parou à soleira da porta como se tivesse saído de casa ontem. Não era mais o pau de arara que o levava e trazia da cidade. A poeira vermelha agora cobria seus caros sapatos, e não mais os pés descalços de menino. Homem feito, não mais pisava aquele solo com a cerimônia de quem caminha sobre seu sustento. Aquelas miudezas da vida haviam saído dele como a terra é lavada dos pés. E ele não se arrependia... mas não esquecera o que havia dito à sua mãe, com lágrimas nos olhos, quando saiu de casa aos quinze anos:

 - Eu volto um dia, mãe... mas volto mudado. Volto aqui pela senhora. Só não me peça pra ficar...

Aquele era o dia de sua volta. Não como o menino que saíra com lágrimas de raiva nos olhos... e sim mudado no homem feito, que não reconhecia mais a terra como a Mãe de tudo aquilo que ele era, mas decidira não ser mais. Os sons das árvores já não lhe traziam a mesma sensação de liberdade. Os mais de trinta anos na cidade tiraram dele o último grão de pó vermelho sobre sua alma... E ele não se reconhecia mais naquela terra.

A casa já não parecia mais tão grande como um dia foi. Sua família, apesar de pobre, era considerada uma das mais abençoadas da região: o solo nunca trincava, os animais nunca morriam, as plantações sempre prosperavam. O povo do vilarejo ao lado acreditava que seus ancestrais sabiam conversar com a natureza, ouvir o chamado do vento e acarinhar com alento as necessidades da terra. Eram pobres, mas consideravam-se afortunados. E essa não era a opinião dele... Por isso decidiu ir embora. No entanto, não poderia se esquecer da promessa feita à sua mãe: voltaria por ela. E era exatamente o que fazia ali, terras sobre os sapatos, naquele dia. Não por vontade própria... Mas por que recebera um telegrama de seu pai.

A casa parecia vazia. Poucos móveis, vários retratos pendurados nas paredes, um para cada membro de cada geração. Não deu muita atenção a eles, como se não quisesse se lembrar. A única coisa que lembrava é que, quando algum ente querido falecia, o seu retrato era retirado da parede ao lado da porta de entrada e colocado na parede sob a qual jazia um altar.

Buscou em volta por um olhar conhecido. No pomar, algumas crianças corriam e brincavam alegremente, alheias à sua presença. A paisagem parecia intocável; sentia como se houvesse uma barreira invisível entre aquele ambiente e ele. Por um momento, pensou em virar-se e ir embora. Mas, ao fundo, um coro de vozes parecia entoar uma mensagem...

- Entre, meu filho. Que bom que recebeu meu telegrama.

Ouviu a voz rouca de seu pai falar de um lugar escuro da sala. Ele olhava para fora da porta que dava para a varanda aos fundos da casa. Parecia ter nas mãos algum objeto, que segurava como a um tesouro.

- Claro que recebi... Mas não entendi por que me chamou aqui, hoje.

O pai engoliu antes de falar.

- Você prometeu que um dia voltaria para sua terra, para sua casa... mas mudado. E também falou para a gente não pedir pra você ficar...

- Sim, meu pai. Eu me lembro muito bem do que disse.

O pai nada falou. Apenas continuou a alisar o objeto. Olhou para fora, onde as crianças brincavam, e cantarolou a música que o coro entoava no fundo do quintal. A atmosfera parecia de festa, de honra, de celebração. Mas a casa estava estranhamente escura. Era fim de tarde, e nenhuma vela ainda havia sido acesa. Sua mãe tinha sempre o costume de acender todas as velas da casa ao cair da tardinha para que a luz nunca faltasse, a começar pela luz do altar.

Ele se virou para confirmar se o altar ainda existia... Lá estava ele. Imagens de santos, fotos de parentes, flores... Tudo em seu lugar. Com apenas uma vela acesa.

Os pássaros da noite começavam a piar em seus ninhos, chamando seus filhos de volta... Foi quando algo se acendeu dentro dele. Apesar de ter recusado suas origens, era impossível não ser tocado mais uma vez por aquela atmosfera. Ouviu, ao longe, a voz de sua mãe chamando-o para entrar e ajudar a incendiar a luz interna. Sua família o havia ensinado a preservar a luz de dentro intacta, ainda que nenhuma luz fosse vista do lado de fora. Aquela luz nunca podia se apagar. E se ele tivesse aquela luz queimando eternamente, sempre poderia se lembrar de quem era.

A luz se acendeu novamente dentro dele... E ele pôde compreender. Caminhou vagarosamente até seu pai, enquanto falava:

- Eu disse que voltaria pela minha mãe.

- Sim, meu filho... pela sua mãe.

Ao se aproximar, mesmo com a pouca luz, pôde ver o que era o objeto nas mãos de seu pai. Um vento soprou forte para dentro da casa, apagando a vela do altar. Olhou para a parede ao lado da porta de entrada, onde estavam os retratos da família. Retirou com reverência o objeto das mãos de seu pai, caminhou até o altar, pendurou o retrato e acendeu a vela que se apagara.

Uma por uma, acendeu as velas da casa até que todas estivessem acesas. Fechou as janelas para que o vento não as apagasse. Era preciso manter a luz interna acesa, sempre, seja qual fosse a ocasião. Sentia que estava pronto para reassumir o lugar que lhe cabia naquele contexto.

- O coro já está cantando, meu filho. É hora de liberar o cortejo.

Voltou até onde estava o pai e o ajudou a se levantar, sem dizer uma palavra sequer. Pegou-o pelo braço e seguiram juntos até onde estava o corpo de sua mãe, envolto em flores, crianças, cantigas e luz... muita luz.

domingo, 17 de março de 2013

Uriel - Joy Wants Eternity


Aquelas paredes já não conseguiam contê-la. Na verdade, talvez fosse ela mesma que já não cabia mais em si... mesmo que aquelas quatro brancas telas tivessem sido sua forma de pintar o mundo durante quase cinco anos. Com cores próprias, com tons que a maioria das pessoas desconhecia.

Não conseguia se lembrar do motivo que a trouxera ali. Algo fútil, talvez, inspirado por alguma emoção estúpida, o medo de estar presente, a falta da capacidade de conter-se. E estar contida foi o que sucedeu por quase cinco anos... mas agora as portas não mais estavam fechadas. Podia nitidamente ouvir os sons do ambiente que a cercou por tanto tempo, e os cheiros misturados invadiam suas narinas como se reanimassem uma parte dela que ficou adormecida. As pessoas transitavam no corredor, e poderia se juntar a elas de vontade própria. Ninguém mais a impediria, não haveria mais ninguém para escoltá-la para dentro... nem para fora.

Carregando os seus poucos pertences, andou pelos corredores com a certeza de não mais voltar. Nunca mais. Não quis olhar para trás... e daquele dia em diante, não foi preciso mais pintar o mundo nas quatro telas brancas que a rodeavam... nem com as suas, nem com as tintas que por ventura a emprestassem. O mundo estava ali, rebuscado, cheio de sentidos, cheio de sensações e coberto de cores. Ao alcance da mão...

Parou em frente à porta, sem conseguir se mexer. Dali para frente, não teria mais como carregar suas tintas. Pensou em voltar; pensou em olhar para o longo corredor atrás dela. Mas antes que o fizesse, sentiu um toque suave encorajá-la. Hora de sair.

O mundo parecia muito maior do que se lembrava. Por um momento, todo aquele ar pareceu sufocá-la. Fechou os olhos e respirou fundo para recobrar os sentidos. Todos os sentidos... sentimentos que já não conhecia mais. Quis correr como uma criança assustada, quis gritar como um animal enjaulado... Mas só pôde seguir em frente. Um passo após o outro. Não recuaria...

Sentiu o mundo como que pela primeira vez. Olhou nos olhos de cada pessoa que passava por ela na rua, como se conhecesse cada uma. Deixou que o ar deslocado pelo movimento brusco dos veículos lhe parecesse brisa. Não pensou em baixar a cabeça. Andou por mais alguns metros... passos largos, firmes, constantes.

Resolveu parar num parque antes de seguir. Sentou-se debaixo de uma enorme árvore frondosa, que enchia de sombra o chão abaixo de si. Deixou que os pássaros cantassem a canção que lhes era própria, e se aproximassem sem medo. Fechou os olhos mais uma vez, agora sem tensão. Sentiu como se algum pincel invisível a pintasse com novas cores... com cores que não teria antes de tudo aquilo. Ouviu o riso das crianças que brincavam... e uma lágrima se formou no canto de seu olho esquerdo.

Sentiu um cutucão sobre seu ombro. Abriu os olhos. Ao seu lado, um menino de seus quatro anos a olhava com um enorme sorriso, estendendo-lhe um papel. “Bem-vinda de volta.”

Ela virou-se como se um raio a atingisse... e percebeu que ele estava parado a poucos metros. Deixou que o menino a conduzisse pela mão até a sua presença.

         - Você se lembrou... Você me esperou...

         - Todo dia, meu amor... nesses quase cinco anos.

Ela olhou o menino que segurava sua mão, e sorria.

- ... É ele.

As lágrimas se avolumaram, já não mais podiam ser contidas. Ela pegou o menino no colo e lhe deu um forte abraço. E chorou copiosamente. Os três se abraçaram, num abraço quase eterno.

Ela deu uma última olhada para o mundo à sua volta. E não chorou mais.

         - Viver sem você foi uma verdadeira prisão...

Ele sorriu.  Ela sorriu. O menino pegou cada um pela mão e os conduziu pelo caminho.

        - Vamos pra casa.

O mundo já não conseguia contê-la. Mas talvez fosse ela mesma que já não cabia mais em si...
E, agora, não era mais só.

        - Vem, mamãe!

sábado, 16 de março de 2013

Teardrop - Massive Attack


09 de novembro de 1999...
Uma data tão absurdamente remota e tão comodamente incomum, que seria até difícil de acreditar, se ela quisesse – e ainda se pudesse – contar tudo aquilo para alguém. Jamais pensou que voltaria a sentir tudo aquilo de novo. Era tão menina naquela época, de uma vivência tão incipiente, de uma noção de vida menor ainda...
Lembrava-se de ter pedido àquela pessoa para que não contasse nada a ninguém, nenhum detalhe do que aconteceu. Sequer seus familiares souberam do ocorrido. Era uma menina alarmada naquele dia, sem saber onde ficar ou para onde ir, acreditando conhecer os mistérios da vida e da morte. Quanta ingenuidade... Não passava de uma garota mimada, cheia de ilusões, querendo viver num mundo de sonhos que sequer eram os seus.
Naquele mesmo dia, aquela mão estendeu-se literalmente para fora da janela - aberta, dedos ávidos por alcançar, por tirá-la de um voo que não era o seu. Não era sua hora de voar, não daquele jeito. Ainda se lembrava nitidamente das palavras que a salvaram:

Olhe para mim... olhe dentro dos meus olhos... você não quer fazer isso... e você sabe.”

Lá embaixo a cidade não parou para vê-la dar um fim a tudo aquilo. Carros trafegando, buzinas barulhentas, uma fumaça negra que encobria quase todo o pôr-do-sol daquela tarde. Aquele poderia ter sido seu último pôr-do-sol... Mas ela decidiu buscar os dedos estendidos em sua direção. Para nunca mais voltar atrás... E ali estava ela de novo, lembrando, revivendo.
Já não era mais uma menina. Vinte anos havia se passado. Renascera naquele dia, como se num parto voluntário de si mesma, amparado pela mão estendida da janela. O coração em seu peito batia tão forte quanto naquele dia: batidas profundas, como se prenunciasse algo.
Conversaram muito naquela tarde, após o pôr-do-sol e o renascimento. Saiu de lá apenas muitas horas depois, quando já era noite. E todas as tardes, ao mirar o espetáculo da despedida solar, lembrava-se que aquela poderia ter sido a sua própria despedida. Mas não foi. E agora ela recebia um chamado urgente da mesma mão que a salvara naquele dia, mãos e olhos que não via há vinte anos...
O elevador parou no andar com um solavanco. Seu coração aprofundava cada vez mais as batidas. Parou à frente da porta do apartamento... Olhou para os lados. O mesmo prédio daquele mesmo dia... Mas muita coisa havia mudado. Muita coisa.
A porta estava estranhamente entreaberta. Dentro ouvia-se uma música. Seu coração tamborilava, e ela respirava profundamente. O ar tinha perfume de jasmim. Aproximou-se, mas continuou parada à porta.

- Entre. Estava esperando por você.

Já era uma senhora. Os cabelos propositalmente brancos denunciavam que o tempo não fazia muita diferença para ela. Mas já havia se passado vinte anos. E ela, do alto de sua sabedoria, parecia não se importar.

- Por favor, sente-se. Não nos vemos há vinte anos, mas você sabe que não é preciso de cerimônia para aproximar-se. Veja, preparei o chá que você gosta. Foi a primeira coisa que você...
          - Foi a primeira coisa que pedi depois que segurei sua mão. Eu me lembro... Como poderia esquecer? Só não consigo entender...
          - Por que eu a chamei aqui? - ela olhou para fora da janela. - Acho que a resposta é óbvia, não é?
          - Você está pensando em...
          - Não, claro que não. A idade não me permite mais dependurar-me sobre minha própria sorte.
          - Então... Por que me chamou aqui?

A senhora se virou... E ela pôde ver que seus pés e pernas já não podiam se mexer. E que seu corpo idoso quase não lhe servia mais. Mas estava lúcida. Alguém provavelmente lhe servia durante o dia e deixou o jantar pronto, preparou o chá, trocou a água dos jasmins, colocou a música para tocar. Só que, naquela noite, a senhora parecia ter recusado aquela companhia.
Ela se sentou com reverência. Pegou a xícara de chá e deu o primeiro gole. Não conseguiu falar, pois não conseguia mais acompanhar – nem entender – as batidas do seu coração. Algo prenunciava um novo começo... Outro renascimento. A senhora, no entanto, falou.

         - Penso em você todas as noites, minha querida. Apesar de tê-la livrado de abandonar-se naquele dia, fui eu que revivi desde então. Passei a ver a vida e a morte de um jeito diferente. Morri e renasci diversas vezes nesse mundo... mas agora está na hora da despedida.

A xícara caiu sobre o chão revestido de madeira, e um som abafado ecoou por sobre a música que tocava incessantemente. O chá escorreu pelo chão até os pés da senhora, que olhava a cena com serenidade. Ela tentou ajoelhar-se para secar o líquido, mas ouviu de uma voz doce:

        - Deixe estar, criança. As coisas são como devem ser.

Sobre os joelhos, sentindo seu corpo e coração perdendo forças, debruçou-se sobre o colo da velha senhora chorando em soluços. Não conseguia entender que destino cruel a levara a encontrar-se naquela situação com a pessoa por trás da mão que lhe dera auxílio, vinte anos depois. Um sentimento de revolta tomou conta dela... Mas já não era tão jovem a ponto de não conseguir entender o que se passava ali. Aquela senhora sabia que era hora de partir...

        - Por favor, me diga... o que eu posso fazer pela senhora?

A senhora a olhou com o mesmo olhar maternal daquela tarde... E sorriu.

        - Apenas me estenda sua mão... E deixemos que o tempo faça o resto... como tem feito há vinte anos.

Fizeram muita coisa durante aquela noite. Contaram histórias, ouviram músicas, falaram de amores e desamores, sobre o destino, sobre a vida e a morte. E sobre os laços que as uniam para além de tudo aquilo.
Dessa vez, não assistiram ao pôr-do-sol. Passaram para além dele...  e assistiram,  juntas, ao nascer do sol do dia seguinte...
Pela primeira e última vez. 

sexta-feira, 15 de março de 2013

Needle & Thread - The Reign of Kindo


Já era muito mais de meia-noite e ele não conseguia dormir... por uma semana. Talvez mais. Não tinha parado para contar os dias... a única coisa que sabia é que sua vida tinha mudado completamente desde aquela noite.
    Aquela maldita noite... Aquela bendita, bendita noite...”
Apesar de tudo – a falta de descanso, a cama bagunçada pelo revirar incessante do corpo insone, até os olhos fundos que nunca tivera – ele sabia que a vida que antes tinha, antes daquela noite, não o satisfazia mais. Até mesmo aquela insônia aparentemente sem fim era mais aconchegante, mais benigna do que o arrastar-se daquela vida amorfa que levava.

Não parecia mais ele há muito tempo... antes. Procurava respostas nos lugares errados, com as pessoas erradas, em pernas misturadas a lençóis que nada tinham a ver com as sensações e os desejos que ele buscava. Não que ele não gostasse de transitar por aquele mundo que conhecia bem, e que fora seu companheiro durante tantos anos. Era um lugar confortável... Não se apegar, não se envolver, não precisar dizer muito mais que meias palavras, palavras meia-boca e meios-termos. Um copo de bebida, alguns trocos sobre a mesa, e quem sabe ele não passaria mais uma noite sozinho, nem mais uma noite vigiando o relógio.

Mas... não. Aquela era uma noite de segunda-feira. E já passava da meia-noite. E já se iam muitas noites inteiras... e mais uma noite e meia novamente perdida. Nem palavras, nem beijos... e apenas ele para bagunçar lençóis que não se misturavam há muito tempo a outras pernas que não as dele mesmo.

Levantou-se, debruçou-se sobre a janela. Deixou que a brisa noturna o fizesse recobrar a razão.

Não!”...

Mas já não parecia possível desligar-se. Pensou em vestir-se e sair, esquecer por um momento que teria de estar de pé para trabalhar em poucas horas. O céu ainda era feito de total breu, então não se preocupou tanto. Talvez ainda tivesse algum tempo... As estrelas nunca haviam lhe parecido tão imensas em sua distância, velando o sono dos humanos... E ele, acordado, revelava em sua mente apenas uma imagem. Já não era capaz de desprender-se de si mesmo, afogar-se naquela vida prática e um tanto vazia, que não fazia diferença, mas também não incomodava... As noites eram perdidas de uma forma muito mais divertida. Então, o que havia de errado naquilo tudo?... E...

O que há de errado comigo?”

A mesma pergunta que fazia todas as noites, há uma semana... Talvez mais. Depois de tanto tempo, depois de todo o automatismo confortável que construíra como uma carapaça para se proteger de sentir, para se proteger do que ele sabia que existia, mas não conhecia, depois de todo aquele trabalho de superficialidade... Veio aquela noite. Uma noite parecida com essa... com algumas estrelas no céu, vigiando o sono da maioria dos humanos, enquanto a lua nova sorria para aqueles que permaneciam lúcidos para observar seu espetáculo.

Ele se lembrava como se fosse aquela noite: seu vulto, ligeiramente prateado pelo sorriso no céu, não era diferente de nenhum outro que havia conhecido. Não era diferente de nenhum outro dos que ocupavam o restante das mesas. Um vulto sozinho, um vulto que não gesticulava, e que parecia apenas observar como ele mesmo fazia. Aproximou-se como um gato que caminha sobre o muro, para não perturbar a cena. Pensou em usar uma das suas frases de efeito, que sempre encaminhavam vultos para os seus lençóis sem muita dificuldade.

Não teve tempo de abrir a boca para falar meias palavras, em meios-termos. O vulto virou-se como se sentisse seu perfume no vento. Olhou com olhos felinos. Indicou a cadeira vazia. E ele não conseguiu falar mais nada, durante todo o restante da noite. Apenas ouviu e ouviu, como nunca fizera em toda sua vida. Viu, sem pressa e sem tédio, o horizonte clarear em tons azulados, enquanto a lua nova despedia-se com o mesmo sorriso. E o sorriso na terra era como o sorriso lunar. O vento sorria, as árvores sorriam, a cidade toda sorria... E ele sorriu por mais uma semana. Até aquela noite, em que já não dormia mais.
Lá fora começava a chover. Vigiou o relógio.

Merda de relógio. Só pode estar quebrado!”

E, com um golpe certeiro na parede branca, o relógio despedaçou-se. E ele vestiu o que achava ser um casaco, naquele escuro. E calçou o que achava ser um tênis.

Desceu as escadas, com pressa de esperar o elevador. Saiu correndo pelas ruas como um gato assustado, tropeçando em poças, desviando de postes, fugindo de cachorros vadios. Fez a pé o caminho de volta para o local do encontro. Trôpego, ingênuo, ansioso, arfante como nunca antes. Algo dentro dele estilhaçara como o relógio na parede, e o tempo já não existia. Não era mais meia-noite de uma segunda-feira... Era a hora do reencontro.

E lá estava o vulto que sorria. E ele pôde sorrir também, depois de uma semana... Talvez mais. Estava encharcado de chuva e felicidade. Um sentimento que o tirara do automatismo das frases de efeito, das meias palavras, beijos em meias-bocas e sexo em meios-termos. Não sabia ainda o que era aquilo, só sabia que não queria mais voltar atrás...

Sorriam um para o outro, em um tempo que não era um tempo... sobre promessas que não seriam feitas, e mesmo assim seriam cumpridas. Estava encharcado pela chuva, e foi como um bálsamo poder ouvir de novo, em silêncio, sem falar uma palavra sequer.

Na sua boca, só um sorriso que pretendia ser eterno. E a chuva sorria em toda a cidade. 

quinta-feira, 14 de março de 2013

O desafio dos 21 dias: Uma introdução


Não é nenhum segredo que os sons em geral e a música em particular são capazes de elevar nossa consciência (ou nossa inconsciência) a patamares que por vezes desconhecemos. Nossa primeira troca com o mundo, quando ouvimos o ritmo incessante do coração de nossa mãe ainda dentro do útero, e – conforme acreditam alguns - também nossa última troca com as idas e vindas da experiência sobre a Terra.
Nosso sistema auditivo é altamente especializado e frágil, algumas de suas células nunca se renovam e é o único sentido que não pode ser anulado nem por nós mesmos. Mesmo sem estarmos conscientes dos sons à nossa volta estamos ouvindo, memorizando e, se esses mesmos sons forem associados a alguma emoção que mobilize de forma intensa nossa mente e nosso corpo, ficam guardados dentro de nós para sempre.
Como a mão de Pandora, que abre o baú das virtudes e agruras do ser humano, a música é capaz de revelar a nós mesmos todo o conteúdo de nossa memória, de nossa emoção esquecida, de acontecimentos marcados como tatuagem sobre nossos sentidos, suscitando sensações inúmeras que por vezes não conseguimos classificar. É através da música que uma cultura se revela, é nela que a história de um povo está hermeticamente guardada, intacta,  podendo ser acessada em qualquer lugar do espaço e do tempo.
A música é amplamente utilizada para levar e elevar a expressão humana – e, no nosso mundo nada ideal, também aplacá-la – trazendo em si a propriedade de ligar e desligar características dentro de nós, abrir ou fechar canais, sintonizar-nos com ondas vibratórias que perpassam cada uma de nossas células em seu próprio compasso. Indígenas, xamãs, sacerdotes, ditadores, mestres, pessoas comuns ou nada comuns... Todos fazem uso desse recurso, e sabem exatamente onde está o seu poder. A música é uma parte indissociável de nossa natureza humana e, como toda arte, não se encerra em si mesma.
A voz foi nosso primeiro instrumento musical. Fazemos sons para mostrar nossos sentimentos, nossas sensações, nossas impressões e repressões do mundo. Toda arte tem essa propriedade... e a arte do discurso e da música sempre estiveram intrinsecamente conectadas (os antigos bardos que o digam). A partir daí, quando passamos a registrar pela escrita o que nossa voz comunica, escrever, cantar e tocar formaram um grupo poderoso a que pouca coisa se compara no quesito expressão.
Vinte e um dias... Por que vinte e um dias? Toda arte tem sua métrica e sua forma, de maneira maravilhosamente não aleatória. Sabe-se que o universo como um todo é criado e recriado a partir de uma matemática própria, uma grafia de si mesmo que se repete em cada corpo celeste e em cada ser vivo. Muito já se falou a respeito dos números ímpares, não só por sua propriedade indivisível, mas por sua forma não dicotômica. Não temos neles nada que se anule nem se complete, e sim propriedades completas por si só, ainda que não isoladas... apenas únicas, especiais... enfim, ímpares. Algumas culturas acreditam serem necessários vinte e um dias para criar (ou recriar) um hábito, bem como para se desfazer dele. Nada mais apropriado quando falamos de música. Passar para além da estranheza, da não aceitação, da vontade de se desapegar e, por fim, deixar que a mágica se faça por si só. Aquela mesma mágica que anima o corpo e reanima a alma...
Com o respaldo da licença poética inofensiva, permitam-me fazer uma pequena correção: “No princípio, era a música.” A música da vida, sucessora do silêncio criativo, irmã da poesia.
No princípio, era a música... depois dela, o verbo. Pois que venha da música o verbo... Vinte e um dias de música e verbo.