Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

DOIS (UM)


Ele entra apressado, ensopado por conta da chuva impetuosa. Seu relógio, sucumbindo à umidade, finalmente para. As pessoas o observam com espanto, enquanto ele molha todo o chão do lugar. Ela, ainda de pé olhando pelo vidro, parece atingida por um raio, como quem tem uma revelação. Algo explodira dentro dela, mas ainda não sabia se era bom ou ruim.
Ele tomou a iniciativa de sentar-se a uma mesa ainda vazia. Não era a mesma em que ela permanecera durante quase a noite toda, esperando por alguém que talvez não viesse. Mas ele veio. Estava ali... Atrasado, apressado, ensopado... Coberto de silêncio dos pés à cabeça. Seus sentimentos, ainda encobertos, não ousavam manifestar-se. Olhou para a mesa, cúmplice de sua espera. Talvez já tivesse se acostumado a ela... No entanto, despediu-se. Ou, pelo menos, deu um até breve. Nunca se sabe quando estaremos em espera novamente...
Ela sentou-se também, à frente dele. Aqueles poucos segundos entre uma ação e outra pareciam uma eternidade. Uma mexida no cabelo, um limpar da água sobre a roupa, um tamborilar de dedos sobre a mesa. O silêncio, benigno para ele, estendia seus tentáculos à compreensão da moça, hipnotizada pela percepção dos ruídos. As mentes despiam-se de ilusões, pouco a pouco. Não parecia que haviam provado de seu gosto, de seu toque, de seu calor, de seu sexo poucos dias antes. Pareciam dois estranhos, envolvidos de espera e silêncio.

- Oi. - diz ele.
- Oi. Achei que não viesse mais...

Ele não responde, como sempre.

- Então, o que você decidiu? – foi ele quem falou, dessa vez.
- O que eu decidi?... Será que depende só da minha decisão?

Ele, calado, como se ouvisse apenas os próprios pensamentos.

- Eu te pedi calma. Queria um tempo...
- E eu dei um tempo. E esperei, como você pediu...
- Esperou?... Só a espera não basta.

Ela sentiu seu sacrifício menosprezado. Gostava que levassem a sério suas desgraças, seus esforços, seu sofrimento.

- E o que mais você queria que eu fizesse?!
- Tomar uma decisão. Resolver o que você quer.
- Você já sabe o que quero...

Ele, mudo, ouvindo agora apenas o silêncio e a respiração ofegante dela. Não de paixão, mas de desgosto.

- Mas... Eu nunca ouvi. Você me quer? Você quer que fiquemos juntos? Você... – Ele se perde em seus pensamentos de fuga. - ...Quer que eu peça alguma coisa pra você beber?

- Não quero beber nada.

Ele tinha a garganta seca.

- Água, por favor.

A água chega... Da bandeja prateada e do céu carregado. Chovia mais do que nunca. O lugar enchia e esvaziava com a chuva. Um estrondoso trovão fez apagarem-se as luzes de parte da cidade. Uma vela é colocada sobre a mesa. Nenhum dos dois fuma. Ele se adianta.

- Fogo, por favor.

A vela acesa cintila a fria madeira da mesa, agora desenhada por um mosaico vivo de sombras. O lugar ganha vida com todas as velas acesas sobre as mesas. Não é mais possível ver nitidamente as expressões nos rostos. Não há mais música ambiente. Silêncio e penumbra são os novos convidados. A conversa muda.

- Então... – diz ela.
- Então... – diz ele.
- Eu... Quero dizer, você...
- Você já se decidiu?
- Eu esperei. Eu fiquei calma.
- Eu tirei um tempo.
- Eu te dei esse tempo...
- Eu pedi pra você esperar e ficar calma.

Silêncio. Olhares sobre as sombras desenhadas. Sombras desenhando a fria madeira da mesa. O teatro de sombras não interpretava, mas dirigia a vontade dos corpos em unirem-se e não mais falarem. Ela queria. Ele queria. Dois corpos e dois corações. Pulsando por uma resposta.

- E você, se decidiu?

Ele ficou surpreso.

- Eu?
- Sim. Você me pergunta se eu já me decidi... E você, já se decidiu?
- Eu... Fiquei um tempo... Esperando por uma resposta.
- Esperando?
- Sim, esperando.

Ela agora entendia.

- E eu... Fiquei um tempo... Em silêncio, ouvindo meus pensamentos.
- Em silêncio?
- Sim, em silêncio.

Ele agora entendia.

- Nós... Vamos esperar e ficar em silêncio para sempre?

Ela não respondeu, pela primeira vez.

- Eu... Eu não sei... Falamos e nunca dizemos nada.
- Ouvimos e nunca escutamos nada...

Silêncio.

- Sabe... Você sabe que eu...
- Sei?
- Você sabe.
- Não, não sei...

Penumbra.

“Hoje eu quis fazer diferente. Fiquei Calma. Esperei o quanto pude. Quase fui embora. Esperei por mais cinco minutos. Cinco não, dez. Hoje eu queria que fosse a última vez: sem mais espera. Que o nosso encontro acontecesse e que fosse tão surpreendente e impetuoso quanto a chuva. Que fosse definitivo. Você me pediu calma... Mas não veio.”

“Ah, não. Desculpa, hoje não dá. Converso contigo depois. Você terá muitas razões pra me odiar, mas hoje não. Preciso de mais tempo...”


Não disseram nada.

Ela colocou a bolsa sobre o ombro e saiu, no meio da chuva.

Ele ligou o carro e partiu, no meio da chuva.

Sobre a vela, uma gota caiu. Era uma lágrima vinda do céu. Os deuses já não entendiam sua criação...

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