Em meu último aniversário, criei uma nova classificação de objetos que com certeza não seria digna de um prêmio Nobel. Mas, de fato, tornou-se bastante prática para mim, naquela data nada festiva. Ao menos me serviu como entretenimento. Muitas são as artimanhas de que nossa criatividade é capaz para escapar da mesmice e do tédio...
A essa altura, acredito que já estejam curiosos para saber a respeito de minha originalíssima invenção. Segurem a criatividade, pois com certeza também cairão na tentação de classificar seus presentes. Para o bem de suas pessoas queridas, que também se esforçam para dar-lhes sempre presente originais, peço que resistam a descer caixas e caixas de objetos guardados e se utilizarem de minha classificação. Nada há de lisonjeiro nisso. Garanto-lhes, nada. Mas... Como disse, é um bom passatempo. Se estiverem, como eu, entediados em seu próximo aniversário, amontoados de presentes “criativos”, façam uso de minha invenção. Não se acanhem, não a patenteei e nem tenho a intenção. O uso é livre.
Minha invenção atende pelo nome de “Escala de objetos ganháveis”. Bem, eu disse que de nada adiantava a curiosidade. Afinal, qualquer um poderia ter inventado isso. Exatamente por esse fato não me dei ao trabalho de patentear. Não podem negar, ao menos, que é criativo, não? Com o tempo perceberão a utilidade de minha classificação. Mas, deixem que explique primeiro como é que ela surgiu na minha vida.
Alguns presentes na minha vida sempre se repetiram. E muito. Peguemos um exemplo: meias. Está bem, dois exemplos: gravatas, camisas. Sim, sim, outros exemplos: cuecas (sim, cuecas), bermudas, pijamas. Chega. Essa ideia vocês já entenderam, certo? Ótimo. Agora, preparem-se para a originalidade de minha classificação: os objetos não são classificados pelo tanto que são dados como presente, mas o quanto não podem ser comprados por nós mesmos.
Pense: meias compramos para nós mesmos; gravatas, podemos ir até uma loja e comprá-las. Mas garanto-lhes que pouquíssimas pessoas algum dia tiveram a ideia de se comprar uma carteira. Sim, aquela carteira para levar dinheiro no bolso do paletó, da calça, ou dentro da bolsa. Podem não concordar comigo, mas tentem se lembrar quantas vezes tiveram a ideia, assim, espontânea, de comprar para si mesmos uma carteira. Não é uma ideia esquisita? Ao contrário, a carteira está praticamente no topo da “Escala de objetos ganháveis”. É a rainha soberana, encabeçando minha lista.
E para que serve essa tal classificação? Ora, para que saibam exatamente o que precisam ou não precisam comprar. Uma carteira, no meu caso, por exemplo. Para que perderia meu tempo e dinheiro (o constrangimento ainda de abrir a velha carteira, e fazê-la sentir-se rejeitada) para comprar uma carteira, já que a qualquer momento ela me seria presenteada? Nunca gastei meu pensamento com carteiras. Elas vinham até mim, sempre.
Agora vejam vocês. Eis que me pego indo até uma loja e comprando uma carteira, vendo toda minha filosofia de vida ruir ante meus olhos. Certo, era demais pra mim. Mas era uma necessidade sobre-humana, minha antiga carteira estava surrada, furada, encardida, quase que o meu dinheiro, que já era pouco, saia-lhe pelos fundilhos. Não poderia mais permanecer naquela situação decadente. E muito faltava para meu aniversário, sequer um amigo-secreto. Então, não me restava nada mais a fazer do que pegar meu carro, dirigir até uma loja e comprar uma carteira. Algo que me soava como a inversão da lei gravitacional, como se fosse Newton atraído pela maçã: “Comprar uma carteira.” Preferi não repetir aquilo para mim mesmo por muito tempo.
Chegando à loja, fui prontamente atendido pela atenciosa vendedora.
- Bom dia, senhor. Posso ajudá-lo?
“Claro que pode, dê-me uma carteira de presente.”, pensei de pronto. Mas não era possível fazer um pedido indecoroso como aquele para a moça. Afinal, acabávamos de nos conhecer, tinha que ir com calma.
- Sim. Estou precisando comprar uma coisa.
Que resposta infeliz. Alguém algum dia se dirigiu até alguma loja para tratar de outro assunto, senão comprar uma coisa?
- Sim, senhor. E o que seria?
Lá vinha ela com perguntas difíceis outra vez. O que deveria responder? Não poderia assim de pronto confessar que fora até ali para comprar uma carteira. Uma carteira para mim mesmo! Já poderia até imaginar: “É para presente, senhor?” Eu não saberia o que responder...
Enfim, após perceber o olhar atencioso da moça em quase desespero, resolvi entregar-me a meu destino. Mas falei em tom baixo.
- Preciso de uma carteira.
Ela, dessa vez, me lançou um olhar piedoso, como se soubesse.
- Ó, sim, uma carteira... Vou já trazer modelos para o senhor olhar.
- Sim...
A vendedora virou-se para buscar as carteiras, mas a detive no caminho.
- Seja discreta, por favor...
Disse-lhe, voltando meu olhar para um outro senhor que se encontrava encostado no balcão. A moça, a quem darei o nome de Jaqueline (talvez esse não fosse o nome dela, estava transtornado demais para me lembrar), olhou-me com certo ar de estranheza.
- Como quiser, senhor.
Até hoje não faço a menor ideia do que pensou Jaqueline sobre mim. Naquela hora, talvez não fizesse diferença.
Enquanto esperava o retorno de Jaqueline, pus-me a observar o outro cliente. Por um instante, esqueci-me de minha árdua tarefa de comprar carteiras, e resolvi travar uma saudável conversa com meu vizinho de loja.
- Com licença.
Ele me olhou com uma cara espantada, mas cordial.
- Sim?
- Está comprando um presente?
O senhor calou-se como um túmulo por alguns segundos.
- Estou comprando uma coisa...
Por um momento pensei que ele também comprava uma carteira para si mesmo. Haveria alguém tão desafortunado quanto eu? Justo naquela loja? Não, não, parecia só um devaneio meu, um erro de análise. Era melhor conversar mais com meu vizinho.
- Ah, eu também. “Uma coisa”. Coincidência, não?
- Não acredito em coincidências.
Não sabia ao certo se aquilo deveria soar filosófico ou hostil. De fato, ele não parecia alguém que não queria ser importunado em sua compra. Continuei.
- Pois eu sim, eu diria. Talvez até estejamos comprando a mesma coisa... Quem sabe?
- Quem sabe...
Silenciamos por alguns instantes. Nisso, retornou Jaqueline.
- Aqui está o que pediram, senhores. Temos vários modelos...
Não me detive ao que Jaqueline falava a respeito das carteiras. Apenas me ative ao tempo verbal. O que “pediram”? Então ele também estava comprando carteiras.
- Obrigada, Jaqueline.
- Estejam à vontade. Se precisarem de mim me chamem, certo?
- Sim.
Dessa vez foi ele que respondeu, envergonhado.
Peguei uma carteira para examinar. Ele fez o mesmo. Uma frase:
- Então era a mesma coisa...
Disse ele, para meu espanto.
- Sim. Coincidência, não?
Ele se calou. Já não sabia mais se não acreditava mesmo em coincidências.
- Comprando uma carteira... Presente, certo?
A pergunta indecorosa. Como tinha sido capaz de perguntar-lhe uma coisa daquelas? Se estávamos no mesmo barco? Mais uma vez, ele se calou. Aquela era a situação mais constrangedora que já passara. Tinha de bolar rapidamente um plano.
- Senhor... Desculpe-me a indiscrição, mas... (em tom bem baixo) O senhor veio para comprar uma carteira para si mesmo, não é?
Ele arregalou os olhos.
- Não se acanhe... (engoli seco) Vim fazer o mesmo.
Ele baixou os olhos.
- No início fiquei me perguntando se ter de comprar uma carteira para si mesmo era sinal de não ser mais amado. Hoje é meu aniversário, sabe?
Estaquei. Tive pena de meu companheiro de compra. E logo de compra de uma carteira para si mesmo. Não soube o que dizer por longo tempo, mas vi que meu mais novo amigo se encontrava em piores condições do que eu. Não era só a necessidade de comprar uma carteira para si mesmo... Era o abandono que o rondava. Sorri.
- Eu preciso de uma carteira, e você também. E ambos já temos o dinheiro para isso. Aceitaria me dar uma de presente, e receber de mim uma de presente?
Os olhos do senhor iluminaram-se.
- Talvez não tenha sido coincidência, afinal.
Ele sorriu.
Ficamos boa parte da tarde conversando sobre presentes, sobre a vida e, claro, sobre carteiras. Ele escolheu a que lhe aprazia, eu fiz o mesmo. E ao chegar ao caixa, Jaqueline à nossa frente, ouvimos a fatídica pergunta.
- É para presente?
- Sim!
Gritamos em uníssono, e arrancamos risos discretos de nossa anfitriã.
Ao final, cada um com seu pacote. Trocamos presentes. Apertamos as mãos. Ambos satisfeitíssimos com suas novas carteiras. Tínhamos dado as costas, quando pensei em me despedir de forma diferente.
- Senhor!
Ele se virou sorrindo.
- Aqui está meu cartão. Quando precisar de uma carteira de presente, me ligue.
Ele saiu quase saltitando.
Eu, naquela tarde, dirigindo de volta para casa e pensando sobre minhas caixas e caixas de presentes, percebi algo dentro de mim. Uma conclusão. O valor de um presente não está na sua utilidade, na sua forma, na sua quantidade. Está na sua história e na sua intenção. Lembrem-se disso na próxima vez que receberem um presente. E lembrem-se também na hora de presentearem alguém.
Ao chegar a minha casa, fiz uma nova classificação de meus presentes. Chamei-a de “Escala de objetos amáveis.” Uso-a até hoje. E é claro que a carteira continua sendo a primeira da lista.