Já não era mais um aprendiz...
Era o que tinha de ouvir toda vez que, em
desilusão, voltava às barbas do velho mestre para vislumbrar um novo caminho.
“Não existe caminho certo nem errado... pois o
caminho é um só. Basta que saibas disso, e estarás sempre rumando para onde
deves chegar.”
E aquelas eram as palavras que martelavam em sua
mente desde que saíra num mundo desconhecido e vazio de paixões. Ah, que árduo
ofício o seu, em um lugar onde pessoas se procuravam por caminhos tortos e que
não sabiam enxergar-se quando se encontravam! Já se cansara de vaguear, em noites
enluaradas ou no profundo breu, em ventanias e tempestades, em brisas mornas e no
chão coberto da mais cruel solidão. Camas continuavam vazias de intimidade ou
cheias de corpos que se encontravam, mas não se preenchiam. Amores que não
sentavam à mesa, que não desvelavam a cortina dos segredos, que não olhavam no
fundo dos olhos. Amores, enfim, que não se “abriam”, no sentido que o mestre
havia muito bem dito quando ainda era um aprendiz.
Mas já não era mais um aprendiz... já não era...
não era? Ainda não se convencera. Não se convencera de que não era preciso
aprender e deixar-se apreender todos os dias pelo mesmo sentimento. Que não era
preciso olhar com os olhos inocentes a cada novo dia, a cada novo dormir e acordar
naquele tempo que não era um tempo. E mesmo que se esforçasse, mesmo que
soubesse como deveria agir, parecia não obter sucesso em todos aqueles anos
humanos.
Sim, houve olhares, beijos, toque e sexo.
Paixão... muita paixão. Patologicamente vivida, em mesma raiz. Inebriante,
sublime, até um pouco incômoda... mas era verdade que, por mais que quisesse
fazer alcançar o patamar seguinte e ao mesmo tempo ao lado – o Amor – não fora
capaz de fazer dar o passo adiante. Sim, pois na paixão não é preciso abrir-se.
Na paixão saem espontaneamente as faíscas, brilham numerosas as estrelas, exalam
as essências das flores ao redor. No amor, não. É preciso enfrentar a
tempestade para ver faiscar o céu, é preciso dissipar as nuvens para ver
estrelas, é preciso enfrentar os ventos do inverno para ver florescer a
primavera e seus odores. E ninguém quer mais aprender a perder para poder ganhar...
*
A noite estava mais fria que de costume, o que
fazia da sua vigília algo ainda mais estarrecedor. Do alto podia ver a cidade
toda e cada um dos “não mais aprendizes” em seus postos, sedentos por algum
resultado. Talvez tivessem - também eles - perdido a noção do que era verdadeiramente
importante...
Olhou seu reflexo na vidraça da
janela. Por um momento, esqueceu-se do que deveria observar e inspirou-se na
visão instintiva de um aprendizado que perdera. Mundos que se misturavam, mas
que não existiam um para o outro. Assim como os mundos pessoais que se
esbarravam acidentalmente, mas que sentavam à mesa sozinhos, declamavam um novo
monólogo a cada manhã, jogavam o corpo em camas vazias de intimidade... com o
outro e consigo mesmos. Tudo o que era comum e incomum... num só reflexo.
Por trás daquele reflexo estava, enfim, o que
deveria observar. A chuva torrencial escorria pela vidraça, dando um ar
psicodélico ao mundo lá dentro. Um raio fez cair a energia em boa parte do
bairro... e foi quando pôde ver, finalmente, a verdadeira essência daquela cena
bucólica. Aproximou-se para não perder nada, enquanto via o seu tatear no
escuro, a procura por fósforos e – finalmente! – o encontro com o passado nas
cartas. Não sem antes aquele chute de desabafo no objeto inerte. Era preciso,
de qualquer forma. Já havia sofrido demais...
“O caminho é um só.”
O mestre dizia. Qual caminho seria aquele? O de
tatear no escuro, de chutar caixas esquecidas, de enfrentar passados não
revelados?... Precisava entender para que todos entendessem. Era preciso
enfrentar o escuro agora. Alinhar-se com o escuro dentro. Somente por entre
clarões de raios era possível ver, por milésimos de segundo, as expressões
atrás da vidraça.
A caixa foi aberta e as cartas, finalmente, relidas.
E reliam ao mesmo tempo. O mundo dentro e o mundo fora. A carta e a cartilha. Depois
de todos aqueles anos humanos quase perdidos, pôde sentir brotar em si a
lágrima da gratidão... Apesar de não ser fácil ouvir aquelas palavras todas de
novo.
Pousou a mão sobre o peito e fechou os olhos
enquanto liam. Choraram. E ele pôde, finalmente, entender.
“Talvez ele se referisse ao único caminho a
seguir... seguir em frente. Caminhar, apenas. Sabendo para onde, sem deixar de
caminhar. O caminho era um só: decidir continuar caminhando no caminho
escolhido. Um caminho, apenas.”
Ouviu o ranger do trinco da janela. A chuva
amansou, curvando-se ante a atitude corajosa de entregar-se. Da carta escrita
um avião foi feito para finalmente alçar voo.
Abriu os braços na esperança de recolher mais
aquela carta... e a acolheu tão logo foi jogada noite adentro pela janela
afora. Sentou-se no parapeito e leu sem se dar conta dos anos humanos.
*
Caro Cupido,
Muito tempo se passou desde a última carta que
lhe escrevi. Cartas de uma escrita impecável e de escassez de sentimento. Não
me preocuparei com a simetria agora... apenas com a empatia. Parei de escrever
talvez por ter deixado de acreditar há tanto tempo, por pensar nestes anos
todos que finalmente havia recebido o que pedi. Mas a verdade, meu querido
cupido, é que me iludi por acreditar que o amor é o algo facilmente alcançável
com uma simples conquista. Esqueci-me de que é preciso enfrentar a escuridão,
levantar-se todos os dias com a inocência para poder enxergar. Achava que não
precisava. Achava que era coisa de livro de autoajuda, de psicologia barata, daquela
velha cartilha mofada no fundo do armário.
(...)
Não queria ter sofrido menos... o sofrimento
sempre me fez crescer. É verdade que a descoberta só vem quando somos capazes
de assimilá-la. Antes não teria... não teria como. Pensava só em mim, mesmo
escrevendo sobre o amor... sobre o amor que eu julgava ter, o amor que julgava
conhecer.
(...)
Não é doce acordar do sonho. Não é belo ter que
enfrentar o que não saiu como planejamos. Ah, quisera eu não ter esse
conhecimento tão piegas e pífio sobre o meu próprio passado! Achando-me o ser
mais informado do mundo, engrandecendo meu próprio ego e me esquecendo do
principal: olhar o outro. Tentando achar palavras que justificassem o amor que julgava
ter por mim... e não tinha. Procurando sentido nas cartas de amor cuidadosas
que escrevia. Mas não havia amor... nem pelo que estava fora, nem pelo que estava
dentro. Tinha apenas um sonho, e nenhuma vontade de abrir-me para que ele
realmente acontecesse. Como uma criança mimada, quis apenas suprir carências. E
é neste ponto, Cupido, que eu lhe confesso: sua ajuda me fez ver que o amor
acontece apenas onde é bem-vindo.
*