Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Carta

Já não era mais um aprendiz...

Era o que tinha de ouvir toda vez que, em desilusão, voltava às barbas do velho mestre para vislumbrar um novo caminho.

“Não existe caminho certo nem errado... pois o caminho é um só. Basta que saibas disso, e estarás sempre rumando para onde deves chegar.”

E aquelas eram as palavras que martelavam em sua mente desde que saíra num mundo desconhecido e vazio de paixões. Ah, que árduo ofício o seu, em um lugar onde pessoas se procuravam por caminhos tortos e que não sabiam enxergar-se quando se encontravam! Já se cansara de vaguear, em noites enluaradas ou no profundo breu, em ventanias e tempestades, em brisas mornas e no chão coberto da mais cruel solidão. Camas continuavam vazias de intimidade ou cheias de corpos que se encontravam, mas não se preenchiam. Amores que não sentavam à mesa, que não desvelavam a cortina dos segredos, que não olhavam no fundo dos olhos. Amores, enfim, que não se “abriam”, no sentido que o mestre havia muito bem dito quando ainda era um aprendiz.

Mas já não era mais um aprendiz... já não era... não era? Ainda não se convencera. Não se convencera de que não era preciso aprender e deixar-se apreender todos os dias pelo mesmo sentimento. Que não era preciso olhar com os olhos inocentes a cada novo dia, a cada novo dormir e acordar naquele tempo que não era um tempo. E mesmo que se esforçasse, mesmo que soubesse como deveria agir, parecia não obter sucesso em todos aqueles anos humanos.

Sim, houve olhares, beijos, toque e sexo. Paixão... muita paixão. Patologicamente vivida, em mesma raiz. Inebriante, sublime, até um pouco incômoda... mas era verdade que, por mais que quisesse fazer alcançar o patamar seguinte e ao mesmo tempo ao lado – o Amor – não fora capaz de fazer dar o passo adiante. Sim, pois na paixão não é preciso abrir-se. Na paixão saem espontaneamente as faíscas, brilham numerosas as estrelas, exalam as essências das flores ao redor. No amor, não. É preciso enfrentar a tempestade para ver faiscar o céu, é preciso dissipar as nuvens para ver estrelas, é preciso enfrentar os ventos do inverno para ver florescer a primavera e seus odores. E ninguém quer mais aprender a perder para poder ganhar...

*

A noite estava mais fria que de costume, o que fazia da sua vigília algo ainda mais estarrecedor. Do alto podia ver a cidade toda e cada um dos “não mais aprendizes” em seus postos, sedentos por algum resultado. Talvez tivessem - também eles - perdido a noção do que era verdadeiramente importante...

Olhou seu reflexo na vidraça da janela. Por um momento, esqueceu-se do que deveria observar e inspirou-se na visão instintiva de um aprendizado que perdera. Mundos que se misturavam, mas que não existiam um para o outro. Assim como os mundos pessoais que se esbarravam acidentalmente, mas que sentavam à mesa sozinhos, declamavam um novo monólogo a cada manhã, jogavam o corpo em camas vazias de intimidade... com o outro e consigo mesmos. Tudo o que era comum e incomum... num só reflexo.

Por trás daquele reflexo estava, enfim, o que deveria observar. A chuva torrencial escorria pela vidraça, dando um ar psicodélico ao mundo lá dentro. Um raio fez cair a energia em boa parte do bairro... e foi quando pôde ver, finalmente, a verdadeira essência daquela cena bucólica. Aproximou-se para não perder nada, enquanto via o seu tatear no escuro, a procura por fósforos e – finalmente! – o encontro com o passado nas cartas. Não sem antes aquele chute de desabafo no objeto inerte. Era preciso, de qualquer forma. Já havia sofrido demais...

“O caminho é um só.”

O mestre dizia. Qual caminho seria aquele? O de tatear no escuro, de chutar caixas esquecidas, de enfrentar passados não revelados?... Precisava entender para que todos entendessem. Era preciso enfrentar o escuro agora. Alinhar-se com o escuro dentro. Somente por entre clarões de raios era possível ver, por milésimos de segundo, as expressões atrás da vidraça.

A caixa foi aberta e as cartas, finalmente, relidas. E reliam ao mesmo tempo. O mundo dentro e o mundo fora. A carta e a cartilha. Depois de todos aqueles anos humanos quase perdidos, pôde sentir brotar em si a lágrima da gratidão... Apesar de não ser fácil ouvir aquelas palavras todas de novo.

Pousou a mão sobre o peito e fechou os olhos enquanto liam. Choraram. E ele pôde, finalmente, entender.

“Talvez ele se referisse ao único caminho a seguir... seguir em frente. Caminhar, apenas. Sabendo para onde, sem deixar de caminhar. O caminho era um só: decidir continuar caminhando no caminho escolhido. Um caminho, apenas.”

Ouviu o ranger do trinco da janela. A chuva amansou, curvando-se ante a atitude corajosa de entregar-se. Da carta escrita um avião foi feito para finalmente alçar voo.

Abriu os braços na esperança de recolher mais aquela carta... e a acolheu tão logo foi jogada noite adentro pela janela afora. Sentou-se no parapeito e leu sem se dar conta dos anos humanos.

*

Caro Cupido,

Muito tempo se passou desde a última carta que lhe escrevi. Cartas de uma escrita impecável e de escassez de sentimento. Não me preocuparei com a simetria agora... apenas com a empatia. Parei de escrever talvez por ter deixado de acreditar há tanto tempo, por pensar nestes anos todos que finalmente havia recebido o que pedi. Mas a verdade, meu querido cupido, é que me iludi por acreditar que o amor é o algo facilmente alcançável com uma simples conquista. Esqueci-me de que é preciso enfrentar a escuridão, levantar-se todos os dias com a inocência para poder enxergar. Achava que não precisava. Achava que era coisa de livro de autoajuda, de psicologia barata, daquela velha cartilha mofada no fundo do armário.

(...)

Não queria ter sofrido menos... o sofrimento sempre me fez crescer. É verdade que a descoberta só vem quando somos capazes de assimilá-la. Antes não teria... não teria como. Pensava só em mim, mesmo escrevendo sobre o amor... sobre o amor que eu julgava ter, o amor que julgava conhecer.

(...)

Não é doce acordar do sonho. Não é belo ter que enfrentar o que não saiu como planejamos. Ah, quisera eu não ter esse conhecimento tão piegas e pífio sobre o meu próprio passado! Achando-me o ser mais informado do mundo, engrandecendo meu próprio ego e me esquecendo do principal: olhar o outro. Tentando achar palavras que justificassem o amor que julgava ter por mim... e não tinha. Procurando sentido nas cartas de amor cuidadosas que escrevia. Mas não havia amor... nem pelo que estava fora, nem pelo que estava dentro. Tinha apenas um sonho, e nenhuma vontade de abrir-me para que ele realmente acontecesse. Como uma criança mimada, quis apenas suprir carências. E é neste ponto, Cupido, que eu lhe confesso: sua ajuda me fez ver que o amor acontece apenas onde é bem-vindo.

*


E, com os olhos em lágrimas de purificação, decidiu que já não era mais necessário. Recolheu seus instrumentos e, segurando junto ao peito a carta lançada da janela, entregou-se ao abismo da sua absolvição.





sábado, 2 de novembro de 2013

Segundo

Tropeçou grosseiramente, em meio ao breu, no objeto cúbico mal posicionado atrás da porta do quarto dos fundos. A topada certeira acometeu o dedo mindinho, o que fez com que soltasse um palavrão de desabafo - como se maldizer o ocorrido fosse amenizar a dor.

Já não tinha mais a quem culpar pela desorganização da casa ou por caixas pesadas esquecidas atrás da porta do lugar onde estavam vela e fósforos. Tão pouco maldizer o passado faria o sofrimento ir embora. Um passado não tão próximo como a topada no dedo mindinho, nem tão distante quanto o início daquele grande amor. Um amor que durara anos, em meio a palavras de amor e palavrões.

Por sorte, encontrou uma lanterna ao invés da vela e dos fósforos. A lanterna ajudaria a manter o foco no que fora ali fazer. Por certo a vela teria trazido memórias que preferia não acessar. A tempestade desabava sobre a cidade no início da noite, e não era mais possível ouvir nada além dos trovões, do som da água caindo e os próprios pensamentos.

Após um ano completo, pensava já ter se livrado da dor. Aquele era um mundo no qual se cobrava força, coragem e paz de espírito, apesar dos pesares. Sempre fora uma figura forte, com passos firmes que nunca tropeçavam. Naquela noite, tropeçou desajeitadamente na maldita caixa atrás da porta. Lembrou-se, com certo sofrimento, de que deixara pegadas marcadas demais sobre aquela história. Como se tivesse pisado sobre seus sonhos, sobre os sonhos dos dois e sobre a possibilidade de realização de qualquer deles. Era um fardo pesado demais para carregar, mas o mundo lhe cobrava a resiliência. Não foi fácil, mas em apenas três meses era como se aquele grande amor nunca tivesse acontecido. “Outros amores virão”, era a frase que ouvia repetidamente daquele mundo que achava que tudo sabia. Não queria outros amores... Queria simplesmente amar-se naquele momento.

Não pensava que a culpa fosse totalmente sua. Não era. Talvez não houvesse culpa. Talvez houvesse apenas cobranças demais e amor de menos. Não, o amor era suficiente... mas cada um fora incapaz de deixar de olhar para as próprias pegadas e entender que, na verdade, o importante era apenas caminhar juntos.

Sacudiu a cabeça e chutou a caixa, como se para espantar aqueles pensamentos. Com o choque, a lanterna soltou-se da mão, caindo com seu foco sobre a caixa. Teve de abaixar-se para pegá-la, ficando cara a cara com o objeto. A tempestade ainda abafava todos os sons da cidade, e pôde ouvir claramente dentro de si: Abra-a. Como se uma enxurrada estivesse prestes a carregar tudo, agarrou-se à caixa como se disso dependesse sua sobrevivência. Abriu-a em apenas um segundo...

Em um segundo, quilos de passado revelaram-se ante seus olhos. Algo que havia sido esquecido há tanto tempo, e que remetia ao início de todos os seus medos, seus anseios e seus desejos. A caixa, estranhamente esquecida atrás de uma porta, estava repleta de cartas escritas há muitos anos.

Não se lembrava de ter escrito tantas cartas naqueles anos de relacionamento. Perguntou-se por que elas não foram divididas na separação, ou sumariamente queimadas em latas de tinta – a mesma tinta usada para cobrir escritos de amor nas paredes. Não havia razão para estarem ali, intactas, convictas, resolutas. Depois de tantos anos de pegadas sobre sonhos, havia deixado aqueles para trás. A curiosidade foi maior do que o medo de revirar aquele baú metafórico de memórias. Vasculhou as cartas com o cuidado de quem manuseia um tesouro.

Não eram cartas de amor, como esperava. Eram cartas que descreviam todos os sentimentos que tivera em cada um dos seus relacionamentos. Cartas endereçadas a alguém em quem acreditava, revelando segredos que nunca poderiam ser remetidos. Uma carta toda primeira segunda-feira de cada mês... Reveladas em um segundo.

A tempestade fora se tornou tempestade dentro. A enxurrada de sentimentos levou embora a falsa pretensão de força e coragem. Nunca em sua vida pensou conseguir tamanha sinceridade consigo. Chorou lágrimas de anos em que brigara com as próprias atitudes, em que evitara entrar em contato com a própria dor por meio de alguns palavrões falados ao vento e outros tantos chutes no desconhecido.

A água do céu tornou-se música, enquanto sua sinfonia ia aos poucos cessando em pianíssimo. A água do coração ainda jorrava através dos olhos, lavando expectativas não cumpridas. Ao dobrar e envelopar a última carta, olhou pela janela e sorriu. Correu como uma criança travessa à busca de papel e caneta, e escreveu em quase um segundo sob o foco da lanterna, sem se dar conta de que a cidade já se iluminava.

Escreveu e assinou. E pensou: “Esta será remetida.”

E dobrando-a em forma de avião, fez com que seus sonhos alçassem voo pela janela.






domingo, 29 de setembro de 2013

"No início era o verbo"...

Esperou com olhos arregalados que a descoberta começasse.

Há tempos vinha esperando por aquele momento. Arrepiava-se ante o vislumbre do mistério, do desvelar-se de tudo que fora guardado detrás de sombras... e de luz.

Respirou por três vezes e tentou se acalmar. Do contrário sua ansiedade o faria perder alguma palavra, algum momento. O mestre ia falar...

- Podemos começar?

- Claro, claro... – disse, nervoso, ajeitando sua posição.

- Certo. Já sabes o que mais deves saber?

- O que mais? – ficou confuso. – Não posso saber mais, pois ainda nada sei. O que mais devo saber?

- Mais do que sabes, bem se vê!... Quis dizer: já sabes o que de mais importante deves saber?

- Ah, sim! – agora tudo fazia sentido. – Devo saber do que se trata a essência do Amor.

O mestre manteve-se em silêncio. Olhou-o calmamente no fundo dos olhos, como se quisesse dali arrancar a petulância de um aprendiz tão cheio de si. Em seguida, uma gargalhada atingiu seus ouvidos de iniciante, vinda da garganta do mestre sempre sisudo. De fato, a cena mais grotesca que já vira na vida. Ajeitou, mais uma vez, sua posição. Respirou por mais três vezes. Do contrário, teria gargalhado junto... ou chorado ante o terror daquela carranca.

O mestre ia falar...

- Meu caro, não há nada mais custoso do que compreender a verdadeira essência do Amor. Pois ele, em si, é dúbio, incoerente, insensato e por vezes inóspito.

- Como assim?... Não seria o Amor o sentimento mais sublime que existe?

O mestre não discordou ou tão pouco concordou.

- Ficará mais fácil entender se elevarmos o Amor ao status de ação: AMAR. O Amor, per se, não passa de um sentimento estanque, estático. Um estado que na verdade não existe. A ilusão de estar num estado de Amar. Em verbo movimenta-se, expande-se, extrai de um momento a continuidade.

Só conseguia anotar. Prestar atenção sempre fora seu forte... Mas aquilo precisava anotar, para nunca mais esquecer.

- Mestre, entendo quando fala do Amor como verbo, como ação. Nossa função seria, portanto, manter o Amor como ação, isto é, em perfeito movimento de Amar?

O mestre cruzou os braços em frente ao peito, satisfeito.

- Vejo que já entendeste tua primeira lição: Manter o Amor em perfeito movimento de Amar. E este perfeito movimento requer...

Interrompeu a frase no meio. Pela sua expressão, esperava que completasse a frase.

- Requer... Ahm... Requer...

Os braços cruzados de satisfação desfizeram-se em um clamor aos céus.

- Tempo, meu caro, tempo!... Mas não somente o tempo, pois ele é capaz de desgastar o Amor quando esse ainda não é verbo. A continuidade do perfeito movimento requer a flexão de vários outros verbos: doar-se, entregar-se, apegar-se, expressar-se... compreender, aprender, ceder... falar, calar... ouvir... E, meu predileto: ABRIR.

- Abrir, mestre?

- Sim, abrir. Amar se trata, principalmente, de abertura. Abrir-se para mudanças, abrir sua vida para outra pessoa, abrir mão do próprio ego. Ninguém é capaz de Amar e receber os benefícios do perfeito movimento se não for capaz de ABRIR seus pensamentos, sua alma e seu coração para o novo, para o intangível e inseguro, para o escuso, o imperfeito e o obscuro.

- Não tinha ideia de como Amar poderia ser tão luminoso... E ao mesmo tempo tão sombrio.

- É certo que é preciso haver luz para que haja sombra... Mas nos esquecemos de que é preciso conhecer a sombra para entendermos a luz.

Suspirou.
Pensou por alguns instantes.
O mestre não interferiu. Esperou que ele falasse.

- Mestre... – disse ele, um pouco triste. – Se Amar é mesmo tudo isso... Poucas pessoas amam de verdade.

O mestre sorriu.

- Eis nossa grande função, meu caro. Se pretendes contribuir para que o perfeito movimento nunca cesse... Assegures-te de que todos os fatores estejam presentes quando desferires teu golpe certeiro. Tua chance é uma só, ainda que o Amor tenha várias chances. Não sejas frívolo em tua pontaria. Do contrário, o mundo apenas ficará repleto de paixões sem sentido.

Levantou-se convicto. Fez uma reverência ao mestre.

Antes de sair, respirou por mais três vezes...
Do contrário, estremeceria em sua pontaria e encheria o mundo de paixões sem sentido, nada mais.


“No início era o verbo”...





quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Tempo e a Espera


Sentou-se à mesa mais confortável que encontrou, perto da grande vitrine que dava para a rua. Era costume seu – talvez pelos últimos... hum... dois anos, mais ou menos – sentar-se em algum café da cidade aos finais de tarde, quando o mundo lá fora corria para alcançar algo que não se sabia o que era. Talvez corresse atrás do tempo ou para chegar antes, ou quem sabe ainda para adiar os acontecimentos. O motivo não importava: o ritmo era frenético e, quase sempre, injustificável. Por que correr se, em algum momento, todos chegarão onde querem?
O cansaço parecia ser o senhor de toda aquela ansiedade. Olhos não se encontravam, mentes divagavam, e quando um corpo tocava outro era por algum esbarrão pela falta de espaço para a correria (atrás de algo que não se sabia o que era). Muitas vezes, não havia nem tempo para pedir desculpas ou fazer um comentário simpático como “Ah, esta correria!”. Não, cada qual continuava no próprio ritmo frenético.
Não participar daquela “normalidade” forçada fora uma resolução sua. Por isso sentava-se quando todos corriam. Todas as tardes adentrava um dos cafés da cidade, sentava-se perto da grande vitrine que dava para a rua (quando não tinha vitrine, ficava ao lado da porta mesmo) levando consigo um livro e um celular. Daqueles que traz tudo à disposição: falar, escrever, navegar, escutar... ou ignorar, quando fosse o caso. Bastava um clique num botão, e todo um mundo desaparecia. Um mundo onde as pessoas só não corriam porque deviam ficar paradas fisicamente para usufruir dele.
Gostava de lidar com coisas diferentes, mas intrinsecamente iguais. O livro e o celular, por exemplo. Dois mundos, dois tempos. Gostava de revezar entre um e outro, brincar de ir e vir de passado para presente, presente para passado, confortando-se por não saber nada a respeito do futuro. Não tinha como saber quem seria a próxima pessoa a passar por sua vitrine-tela ante seus olhos, não podia saber como seriam seus filhos e netos (caso os tivesse), qual seria a próxima descoberta da Ciência, ou se o seu vizinho de mesa espirraria às suas costas. Não tinha controle sobre nada... A não ser sobre o livro e o celular. Ainda assim, eles frequentemente lhe pregavam peças. O livro mais que o celular em termos de personalidade. O celular mais que o livro em termos de temperamento.

- Desculpe pelo atraso. É impossível transitar pela cidade neste horário... Demorei muito?

O café quente que trazia com delicadeza à boca ardeu-lhe por todo o aparelho digestivo. Dera um enorme gole devido ao susto. O líquido vazado da xícara despejada com força sobre o pires ardeu sobre a madeira da mesa.
Não conseguiu falar palavra durante alguns milésimos de segundo. Só teve tempo de recolher o livro e o celular para que não ardessem também com o café.
Olhou em volta.

- Olha, acho que você se enganou de pessoa.

O ser não identificado também olhou em volta. Mas olhou mais para dentro de seus olhos.

- Eu nunca me engano.

Não gostou nada da petulância daquele ser que era aparentemente contraditório: corria para não chegar atrasado e logo em seguida sentava-se quando todos corriam. E sentava-se à mesa errada.

- Pra tudo existe uma primeira vez... E esta é a primeira.

- Não, tenho certeza que não me enganei. Você não estava à espera de alguém?

Entreabriu os lábios para responder, mas conteve a voz na garganta. Estava? Nunca ficara sem responder a nada de pronto. Sempre tinha uma resposta na ponta da língua... nunca uma dúvida no fundo da garganta.

- Eu...

- Então, fique feliz, pois sua espera terminou. Não era o que você queria? Estou aqui...

- E o que você sabe sobre a minha espera? Você, alguém que entra sem aviso, chega à minha mesa sem permissão e ainda me faz perguntas que eu não sei responder?

O ser sorriu sarcasticamente.

- Pra tudo existe uma primeira vez, não é mesmo?

Ah, não, aquilo era de tirar do sério!

- Alguém que, ainda por cima, tem a petulância de usar minhas palavras contra mim! Quem é você, afinal?!

- Ora... Você ainda pergunta?... Eu sou quem você estava esperando.

Suas sobrancelhas, curvadas ante o ímpeto de levantar da cadeira e juntar-se, pela primeira vez, à correria desenfreada de pessoas que não se conheciam, cederam ao relaxamento. A frase, apesar de absurda, parecia fazer sentido. Há muito esperava, toda vez que se sentava em um dos cafés da cidade aos finais de tarde, por alguém que acalmasse sua pressa e reparasse em sua vigília voluntária. Pela primeira vez (quantas vezes ainda repetiria essa expressão?), alguém olhava em seus olhos e dizia que estava ali para cessar sua espera.
Olhou para o café derramado sobre a mesa. Mirou o livro e o celular repousados sobre seu colo. Olhou os olhos que não miravam nem para o café, nem para o livro ou para o celular. Aqueles olhos miravam os seus.

- Por favor, sente-se.

Sentou-se bem de frente na cadeira vazia, sem desviar o olhar.

- Há quanto tempo está aqui?

- Mais ou menos uns dois anos.

- Por que esperou tanto? Por que consumir xícaras de café, páginas em papéis e em telas se, no fim, apenas seu tempo foi consumido?

Engoliu a dúvida no fundo da garganta, que agora virava tristeza.

- Não há justificativa...

- A espera é justificada quando aliada ao tempo. Lá fora alguns correm contra o tempo. Ignoram-no e acabam se tornando escravos dele. Aqui dentro você tem todo o tempo do mundo... E só espera.

O líquido amargo acumulou-se no canto do olho.

- Quem é você?

- Acho que já respondi a esta pergunta.

- Mas... Quem eu esperava? Nem eu sei dizer...

- Esta pergunta só você pode responder.

Chorou dois anos em dois minutos. Secou os olhos por baixo dos óculos. Pegou o livro junto ao peito por baixo do casaco e colocou o celular no bolso da calça. Levantou-se sem dizer nada.

- Vai embora?

- O tempo não volta atrás... Já esperei o que tinha que esperar. Tenho tempo, por isso não vou correr. Vou apenas justificar minha espera...

Seguiu para a porta.

- Espera!

De costas, esperou que se aproximasse.

- O tempo é seu aliado agora, lembra-se? Vou com você.

Sorriram. Chovia torrencialmente.
Olharam nos olhos.
Deram as mãos.

E, sem abrir guarda-chuva, seguiram pela rua em seu próprio ritmo.

domingo, 7 de julho de 2013

Sem Reserva

Eu queria
Não querer tanto...

Passar do branco ao preto
Sem esbarrar no cinzento,
Pular para o riso logo após o pranto...

Eu queria
Poder encantar-me do desencanto,
Fazer do tecido a tez da tessitura,
Poder valer-me do que antes já valia,
Jogar-me sem medir a altura,
Abrir-me para além da abertura...
(Quem sabe? Um dia...)

Eu queria
Alçar voos além do próprio céu,
Desnudar-me da nudez coberta em véu,
Jorrar de mim o fluido da aurora!
Fertilizar a terra, amar sem reserva
E nunca precisar ir embora!
- Aquilo que dentro das mãos se conserva
Não se desvela do passar do tempo...

Imundo, abatido, moribundo...
Eis enfim a sede de mundo!
Que seca a garganta
E resseca o peito
Quando a pele se espanta
E o toque não mais é perfeito...
Ah, como eu queria poder tocar
Milhões e milhões de vezes
Aquilo que toca certeiro o teu coração!
Refém da própria condição,
Referencio minha súplica:
Faço da dor manifestação pública
Para chegar-lhe aos ouvidos como canção...

Ah, como eu queria!

(Não querer tanto...)

Brasília, 07 de julho de 2013

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Quanto?

Quanto vale a veste que você usa,
a terra sobre a qual pisa?
Quanto vale o alimento que lhe nutre,
o ar que você respira?

Quanto?...

Quanto pena?
Quanto pensa?
Quanto aspira...

Inspira-se em quanto leva consigo, enquanto revela...
Em quanto reavalia seus fracassos e conquistas
esperando valer a pena...

Quanto vale sua atenção?

Quanto vale o olhar em sua direção?

Quanto valeria olhar-se sem valia,
sem valer-se da intenção
de mirar os olhos que queria?

Os olhos... Os sonhos... O mundo...

Quanto vale deixar-se valer de um segundo
e fazer valer o dia?

Vale tanto quanto parar de queixar-se
para aquietar o coração!
Vale quanto, tanto amar sem razão?
Vale tanto, quanto arder-se em paixão!

Vale tanto quanto saber
que o valor está em quê...
Em qual...
Em como...

O valor incomensurável e único
de amar sem perguntar-se quanto...

De amar a se perguntar:

QUEM é você que amo tanto?...


Brasília, 07 de junho de 2013.


sexta-feira, 31 de maio de 2013

Diga que ama...

Diga que ama a quem ama.
Diga, mesmo que pareça banal.
Diga, mesmo que você não esteja assim tão inclinado a falar todos os dias... diga, assim mesmo.
Diga sem economizar pontos de exclamação, sem tentar se proteger de sentir. Afinal, o que de tão ruim pode acontecer a você por se entregar?
Diga! Mas diga de verdade, não para receber algo em troca.
Diga! Mas diga com convicção, para não ser desmentido depois.
Diga olhando nos olhos, com palavras e gestos vindos de todos os cantos de quem você é.
Diga de forma arrebatadora, de forma discreta, de um jeito inocente, com os lábios trêmulos, com a voz embargada, com lágrimas nos olhos... Diga! Da maneira como quiser... mesmo que lhe custe o ego.
Diga... mesmo que nada ouça, mesmo que nada veja ou toque em troca. O amor vai além da posse, do entendimento... vai além, muito além de envaidecer-se. Perpassa pelo corar-se, pelo preencher-se, pelo soltar-se, pelo não caber em si... Viajar sem querer, perder-se e encontrar... a si e ao outro. Pois quem ama e demonstra, mesmo que não correspondido, encontra dentro de si a força de revelar-se, de amar a si mesmo.
Diga na frente do espelho, ao pé do ouvido, no canto da boca, debaixo dos lençóis...
Diga com a força de mil sóis, com a paz necessária para aquietar o coração quando a única resposta é: Não.
Nem sempre amar e ser amado é possível... Caso em que amar-se é sempre a melhor solução.
Amar-se sempre, para sempre... Para conseguir amar ao outro.
Amar o outro sempre, para sempre... Para conseguir amar a si mesmo.
Eis o ciclo infinito chamado amor... que não desgasta, não envelhece, não retrocede, não se vicia, não aprisiona, não amarga e nem desaparece... enquanto for amor.
Ame...
E diga que ama a quem ama...
de verdade...

sábado, 30 de março de 2013

Through Glass - Stone Sour


Corria para poder alcançar o que parecia inalcançável. Nem mesmo o vento contrário podia impedi-la em sua intenção de chegar antes do tempo, sobrevoar a cidade com os pés de Zéfiro...

Sabia que havia outros meios melhores de conseguir chegar, que a levariam além das próprias intenções, mas não conseguia mais pensar... somente sentir o aperto que a deixava quase sem ar. Tinha que correr para poder respirar, correr para continuar vivendo. Não podia e nem queria conter aquele sentimento arrebatador que a tomava por completo.

Não sabia o que aconteceria depois. Talvez aquela não fosse a melhor maneira, ou talvez tivesse sido melhor deixar as coisas como estavam. Algumas palavras rudes, algumas fotos jogadas ao vento do sexto andar... E já não teria mais aquela paz que antes tivera, de poder ver roupas e vinis jogados pelo chão. A paz de estar sozinha, aquela paz que ela tanto quisera durante os últimos meses, agora parecia uma faca apunhalando-a pelas costas. Não era o que queria... Será que era melhor deixar as coisas como estavam?...

Pensava... e corria. Não era possível parar de correr. As pernas já seguiam sozinhas em direção ao aeroporto. Esquecera as chaves do carro e do apartamento vazio. A mobília fria, sem o calor dos corpos quentes de desejo em noites de outono, falava verdades que ela não queria ouvir. Não tinha sido culpa de ninguém, cada um fizera o que podia. Cada um agira de acordo com seus medos escondidos, esquecendo-se que em algum ponto do meio estava o amor que cultivavam há pouco mais de dois anos. Cada qual com suas feridas abertas, sangrando sobre letras de músicas que não eram sua trilha sonora. Pararam de enxergar um ao outro para ver apenas a si mesmos e sua culpa... Mas não tinha sido culpa de ninguém.

O vento soprava ainda mais forte. No horizonte uma tempestade prateada se formava. A vontade de Zéfiro a levava para frente... e ela sabia que chegaria, nem que fosse em pedaços. Pequenos pedaços não recolhidos de si mesma. Não havia outro lugar que queria estar a não ser naqueles braços que conhecia tão bem e ainda queria. Braços que reconheceria pelo calor, pelo toque e pela intenção dentre milhões de outros. Os que ela queria...

O vento soprava tão forte quanto naquela tarde em que levara embora as imagens impressas de memórias que ela conhecia tão bem... Mas que não queria mais.

Tinha que correr para continuar respirando... respirar para continuar vivendo. Ainda que seu corpo estivesse preparado para o esforço, a emoção conferia uma dificuldade a mais que quase lhe turvava a visão. Não sabia se chegaria... E, se não chegasse, perderia para sempre o que tanto queria. Olhos, lábios, cabelos, braços... uma vida ainda não ocorrida, jogada pelo sexto andar. Uma força descomunal a empurrava para frente, propulsionando-a como um míssil. Zéfiro e ela já eram um só...

Chegou ao aeroporto ainda correndo... ainda respirando. Em um só pedaço colhido de si mesma. Mas sabia que uma parte dela poderia partir a qualquer momento... E ela se partiria em pedaços.

Não pensava, apenas corria. Sequer se deu conta do rebuliço que causara atrás de si. Algumas pessoas a seguiram... Mas ela e Zéfiro já eram um só, e ninguém conseguia alcançá-la... seria como alcançar o inalcançável.

Chegou até a janela que dava para a pista... e foi com desespero que pôde ver o avião partindo. Parte de si mesma partiu-se em milhares de pedaços. Não sabia se os recolheria...

Apoiou-se sobre o vidro e sentiu toda a estafa que a corrida conferia a seu corpo. Ouviu seus perseguidores se aproximando, e foi num gesto de entrega que deixou que a levassem para fora do aeroporto.

Pouco depois, já em um pedaço amargo de si mesma, sentou-se em um ponto onde podia ver as nuvens clareando diante de seus olhos. A chuva fora levada para longe pelo vento que sua corrida produzira. Ela e Zéfiro eram um só...

- Você chegou atrasada.

Dentro dela pedaços se juntavam. Ali estavam os olhos, lábios, cabelos e braços que ela tanto buscara... E tanto queria. Deixou-se jogar e jorrar para dentro dele por meio dos sentidos, sem dar-se conta do tempo.

- Por que você não me disse nada?

- Porque eu sabia que você viria...

- Você não queria ir embora?

Ele tirou os bilhetes de dentro do bolso do sobretudo.

- Você chegou atrasada. – repetiu, e sorriu o sorriso dos lábios que ela tanto queria.

Ela o pegou pela mão e correu até o portão de embarque.

E partiram nas asas de Zéfiro, em um só pedaço.



segunda-feira, 25 de março de 2013

It's Alright - Melissa Otto


Fechou os olhos como se o mundo não pudesse tocá-la. Deu a si mesma aquela pausa, tão necessária, para prestar atenção aos sons e cheiros que ainda não conhecia.

Deitou-se na relva como se a terra que seu corpo tocava fizesse parte dela, até o momento no qual pôde entender que, realmente, não havia diferença... Tudo, naquele momento, fazia parte de uma coisa só.

Há muito sentia uma falta dentro de si mesma que não sabia dizer o que era. Os dias passavam curtos, como se o tempo quisesse engolir suas intenções e seus sonhos por completo... Os esforços já não condiziam com os resultados. Dar os próprios passos em um mundo cheio de cobranças tornou-se algo doloroso. E não tinha sido para isso mesmo que aquele mundo a criara? Para que pudesse seguir com os próprios pés? Mas não, já não era possível. Apressar-se ou atrasar-se havia se transformado em um suplício.

Apenas uma lembrança a confortava. Uma imagem distante e tão próxima de si mesma, que era quase possível tocá-la no infinito. Tão íntima e tão remota como as estrelas vistas todas as noites no céu. Alguém com quem pudesse dividir seus verdadeiros sonhos, anseios e paixões. Uma parte dela que, por estar sempre lá, não dava importância; mas que conservava sua beleza tão única, tão singela, tão... sua.

Aconchegou-se ainda mais na relva, sentindo o tato sobre a pele. Não fazia mais diferença onde estava, em que tempo estava ou onde estaria dali alguns minutos. Tudo que importava era o presente. Sentir-se no presente. Sem expectativas, sem medos, sem ilusões. Sem se dar conta, o som da brisa nas árvores a levou a um estado de transe que nunca antes havia experimentado. Nada que o ser humano era capaz de inventar poderia proporcionar aquilo... Apenas aquele lugar, naquele estado de consciência.

Um riso de criança soou ao seu redor, e ela despertou com um susto. Olhou em volta e viu uma pequena menina, de seus 5 anos, fazendo tranças em seus cabelos. Por alguns segundos, não ousou respirar. Em seguida, ficou preocupada e resolveu se aproximar da menina.

- Olá, querida... Você está perdida?

- Não estou não, sei bem onde estou... E você, está perdida?

Ficou alguns segundos analisando aquela figura que lhe parecia tão familiar, sem ousar retrucar a uma frase tão segura de si. Reparou que tinha flores nos cabelos e uma caixinha de música em seu colo.

Observou com que dificuldade a pequena menina tentava fazer tranças nos próprios cabelos, e resolveu ajudá-la... E essa abriu um sorriso de orelha à orelha.

- Só você mesmo poderia saber exatamente como fazer! – disse a menina, contente.

Olhou em volta e não havia mais ninguém. Pensou em saber onde estariam os pais da menina, mas foi interrompida como se tivesse os pensamentos lidos.

- Não estou perdida, nem sozinha. Este é meu lugar. Mas você me chamou aqui...

- Eu chamei você aqui?

- Sim. Quando desejou se lembrar de quem você era.

Sem avisar, a menina puxou-a pela mão e levou-a até cada uma das lembranças de sua infância... o cheiro das maçãs recém-colhidas do pomar, o balanço de ferro rangendo após a chuva forte, tanques de areia, bonecas de pano, o som do granizo batendo na janela de vidro e os gritos pelo medo do trovão, banhos de piscina e lama, viagens espaciais em foguetes feitos da rede na varanda, cada espetáculo e cada ralado no joelho, entre pular muros e descer ruas de paralelepípedos de bicicleta sem as mãos...

Uma lágrima rolou doída de cada um dos seus olhos.

- Não chore. – disse a menina. – Você não está perdida. É só não se esquecer... E você sempre poderá estar aqui.

E, dando um grande sorriso, deixou que as lágrimas se transformassem em pontes do arco-íris... em cujo fim estava o tesouro de saber quem se é.

Em um passe de mágica, ela acordou de seu transe com a certeza de nunca mais esquecer, ou sempre se lembrar...

A partir dali, caminhou... Mais adulta por ser a criança que sempre seria.

domingo, 24 de março de 2013

Cantiga de amigo - Cantoria (Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai)


Sua respiração estava ofegante...

O sol do meio-dia castigava impiedosamente a pele já ressecada, como punhais que perfuram a carne sem se dar conta. O ar seco piorava a sensação dolorosa, e o hálito quente clamava por uma gota de chuva sequer. Mas não era época de chuva... E o solo rachava como escamas de serpente... Envenenando vagarosamente suas esperanças de sobreviver.

Ele havia lhe trazido tão longe quanto pôde. Havia sido seu único companheiro durante toda a viagem, depois de terem sido expulsos de suas terras pelos jagunços sanguinários dos grandes coronéis. Não sabia ao certo quantos quilômetros tinham caminhado, em busca de alguma sombra e qualquer gole de água. Naquela época, o solo do sertão era mais inóspito do que o do deserto... pois nunca guardava lembranças da fartura. O do sertão, pelo contrário, carregava memórias vivas daquela gente sofrida, cheia de calos nos pés, um punhado de sonhos e muitas esperanças.

Teve que deixar seu amigo à própria sorte, pois esse já não tinha forças para continuar. Ele seguiu então sozinho, cambaleante, à procura de alguma alma solidária que lhe desse comida e água. Haviam perdido tudo que tinham... Os jagunços incendiaram sua casa e toda sua pequena plantação, já sôfrega. A colheita... feita com suas próprias mãos e da forma natural como seu pai o havia ensinado, fora totalmente confiscada. Nenhum grão de nada... nenhum teto sob o qual dormir... nenhuma lembrança sob a qual se abrigar. Todos os seus sonhos haviam sido usurpados, arrancados de dentro de si como se não tivesse o direito de sonhar.

Lembrava-se que foi seu amigo que o avisou da chegada do perigo. Os jagunços se aproximaram sorrateiramente, silenciosos como urubus sobre carniça. Se não fosse o alarme de seu querido amigo, eles o teriam atacado como a ave de rapina ataca o calango desavisado em seu banho de sol. Saiu à varanda armado na tentativa de poder reagir... naquelas terras era preciso. Matar ou morrer. E, se não fosse o seu amigo, ele jamais teria tido a oportunidade de livrar-se do toque da morte.

Saíram em disparada por caminhos desconhecidos. Seu amigo quase foi mortalmente ferido, mas seguiu corajosamente. Correram o quanto puderam, e a noite caiu. Não pararam sequer para beber água, e o frio do sertão era pior que o frio do deserto... pois desafiava as esperanças.

Sentiram suas forças abandonando a vida ao se darem conta da lua minguante no céu. O caminho era mais escuro que de costume... E o cansaço, a fome, a sede e a tristeza escureciam ainda mais a visão. Já não era mais possível saber para onde iam, ou qual caminho deveriam seguir. O conhecimento que tinham da região de repente tornou-se uma memória remota e vaga, e aos poucos ambos começaram a sucumbir ao destino... Seu amigo deixou-se cair sobre o chão de serpente, e ele entendeu que era hora de descansar.

Acordaram com o sol a romper o frio da noite, estendendo seus primeiros raios por sobre os corpos dos dois. Ele se levantou com dificuldade, motivado pela necessidade de continuar encarnado naquela terra. O vento soprava forte do leste, o que impunha ainda mais desgaste aos seus movimentos. Olhou para o lado e viu seu amigo ainda deitado, respirando de forma curta e irregular, no que percebeu que não seria possível para ele continuar caminhando.

Aproximou-se de seu amigo, deu-lhe um abraço de coragem e disse:

- Fique vivo, meu amigo... Voltarei para lhe buscar.

E continuou a caminhada, sem saber ao certo se não sucumbiria à força do vento, ao calor e ao cansaço. Só que agora não podia desistir... por si mesmo, e por seu amigo.

Alguns quilômetros à frente pôde ver uma pequena construção de barro, perto da qual brincavam algumas crianças. Andou, em esforço máximo, até conseguir chegar perto. Elas pararam sua brincadeira e o olharam assustadas. Não foi possível falar... Deixou-se cair pesadamente sobre a terra de serpente, tal qual seu amigo.

Quando deu por si, havia sido socorrido pela família que ali morava. Deram a ele parte da pouca água e do pouco estoque de comida que tinham. Ele, então, explicou-lhes o que aconteceu... e insistiu que precisava voltar para buscar seu amigo.

O homem e a mulher entreolharam-se.

- Ninguém sobrevive sem água nem comida debaixo desse sol. – disse a mulher. - À essa altura, ele já deve estar...

- Não! – interrompeu aquela fala insolente. – Meu amigo está vivo, e eu vou buscá-lo!

- Espere, homem... – disse seu outro salvador. – Você não vai aguentar sozinho... Se insiste tanto em buscar esse seu amigo, vou com você.

E ele saiu, revigorado, de volta ao local onde seu amigo descansava.

Ao chegar, desceu da carroça e aproximou-se de seu amigo com urgência. O corpo, agora inerte, não parecia mais conter vida.

Ele se ajoelhou pesadamente sobre o solo do sertão, mais impiedoso que o do deserto... pois levara a alma de seu querido amigo...

Debruçou-se sobre o dorso do animal, um belo cavalo marrom escuro, e tirou de si o último gole de esperança que tinha para chorar aquela morte. E até o vento, o sol e o solo escamado como serpente curvaram-se ante a dor no coração daquele sertanejo...

sexta-feira, 22 de março de 2013

Jardim da Fantasia (Bem Te Vi) - Paulinho Pedra Azul


Corria pelos campos de algodão com um enorme sorriso no rosto. Não conseguia caber em si de tanta felicidade. Suas pernas corriam como se por conta própria, numa vontade imensa de chegar ao topo do mundo, de voar feito bem-te-vi pelo ar, de migrar para alguma terra dos sonhos que deveria existir mais à frente na colina. Uma sensação de liberdade inexplicável, inexorável, capaz de dar asas a todos os seus desejos.

Era menino na época. Devia ter por volta de seus 12 anos. Como de costume, colocara a flor do algodão na janela de sua casa, na esperança de que ela a abrisse, ao invés de só espiar vagamente através da vidraça e esticar o braço por uma fresta para recolher o presente. Nunca dissera uma palavra, nunca dirigira a ele sequer um olhar. Mesmo assim, todos os dias, ao vir pelo caminho de volta da escola, ele recolhia uma flor de algodão com cuidado e deixava no parapeito daquela janela. A janela que ele esperava um dia ver aberta...

Assim se sucedeu por alguns meses... E ele nunca pensou em desistir. Todos os dias, saía da escola, passava pelos campos de algodão e apanhava, com cuidado, a flor mais bonita. Em seguida, corria o mais rápido que podia até a janela fechada e, delicadamente, colocava ali a flor como se ela fosse de cristal. Uma após a outra... Um dia depois do outro.

Certo dia achou que começava a perder as forças. Já não sabia ao certo se seus esforços eram em vão ou se havia algo maior, tão maravilhosamente maior esperando por ele, que nada mais poderia suplantar. E assim pensando, resolveu trepar na grande árvore da colina próxima à casa dela. Subiu no galho mais alto que conseguiu, observando atentamente as imagens que podia apreender do lado de dentro da janela.

Esperou o máximo que pôde. “Este será o último dia”, pensou ele. E o tempo passou... O sol começou a se pôr no horizonte. Frustrado, começou a descer da árvore como quem recebe a notícia de sua condenação. Antes de colocar os pés no chão resolveu dar uma última olhada para a janela.

Finalmente! Lá estava ela... aberta! Não só aberta, escancarada! O vento soprava forte, e ele pôde ver a imagem dela com cabelos revoltos, tão belos e lépidos como asas de borboletas. Ela não podia vê-lo, então procurou com o olhar e a cabeça por todos os lugares. Mirou o pôr-do-sol com uma expressão triste, pegou um tecido de algodão em suas mãos e, com desgosto, jogou-o longe no chão, e voltou a fechar a janela.

Ele desceu do galho mais baixo da árvore e aproximou-se da casa. Recolheu o tecido do chão... e reparou que era, na verdade, uma grande colcha com apenas um bordado sobre ela: uma flor de algodão.

Sem pensar duas vezes, correu até a janela e bateu com o dorso das mãos sobre a vidraça. Ela estava sentada numa cadeira, de costas para ele, e parecia chorar. Virou-se de sobressalto... e correu para abrir a janela.

- Acho... Acho que isso é seu.

- Não... - disse ela – É seu.

Sorriu. O sol já tinha se posto no horizonte, mas ver seu sorriso foi para ele como ver a estrela da aurora. O mais luminoso e belo dos astros vistos no céu... e na terra, a partir daquele momento. E foi num gesto suave, sob o céu estrelado, que deram seu primeiro beijo.

Sentado no sofá da sala, ele se cobria com a mesma colcha de algodão há quase 50 anos. E não havia nada mais aconchegante do que aquele fino tecido, que lhe cobria não o corpo, mas a alma...

- Venha deitar, querido... Ainda enrolado nessa colcha velha?

- Não é uma colcha velha... É uma lembrança.

- Lembranças não aquecem o coração...

E surgiu, mais uma vez, a estrela da aurora.

- Vamos, venha se deitar comigo... Já é tarde.

- Ainda é cedo...

E beijaram-se, como que pela primeira vez, há quase 50 anos...