Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A Luz de Lúcia

Gérson deixou como sempre os sapatos à porta enquanto arrancava as meias dos pés, afrouxava a gravata, despia-se do paletó e jogava displicentemente sua pasta de trabalho sobre um dos lados do sofá. Era quarta-feira, dia de jogo, então não perdeu tempo para pegar o controle e ligar a TV, jogando-se no sofá com maior displicência do que a pasta. E aquela era a final! “Finalmente”, pensou ele, “Algo na TV que não me fará dormir.” Mesmo sem tirar a roupa com a qual vinha da rua, esparramou-se no sofá esperando pelo início da partida. Mas pensou: “Na hora de pegar a cerveja na geladeira é que é ruim morar sozinho!”.
Levantou-se com preguiça e foi até a geladeira, ainda maldizendo a solidão, mas comemorando a solteirice. Ninguém para atrapalhá-lo a assistir o jogo, querendo contar como foi seu dia, que ele tire logo aquela roupa de um dia todo de trabalho e vá tomar banho, ou que queira ver um filme água com açúcar ao invés do jogo. Nada, além do sofá, a TV, a cerveja e o silêncio.
Por um tempo, sentiu-se nostálgico. Não só de desvantagens se faz um casamento... Fora casado por doze anos. Anos de algumas brigas, muitas conquistas e mais ainda de aprendizado. Uma época boa, aquela. Os dois se gostavam, conheceram-se ainda na faculdade, mas algo os levara a ficar juntos pela comodidade de montar um patrimônio comum, e não por amor. Com o tempo, ele cansou-se das cobranças em torno da vida financeira do casal, e ela apaixonou-se por outro homem. Nada que não pudesse ser previsto. E, de fato, apesar de ter sido um tempo bom, não foi tão difícil assim ficar sozinho... Mas ele, do alto dos seus 40 anos, já não queria noites de chegar em casa sem ter com quem conversar. Queria se apaixonar, dividir não só coisas, mas uma vida. E isso ele nunca tivera.
O narrador anunciou o início da partida, e tirou Gérson de seu devaneio. Ele se acomodou cuidadosamente no sofá, para não derramar a cerveja já aberta, colocou seus pés sobre a mesinha de centro da sala e sorriu, satisfeito. Nada poderia atrapalhar aquele seu descanso. Nada...
Subitamente, um breu tomou conta de seu apartamento, da rua e, pelo jeito, de boa parte da cidade. Pôde ouvir da janela as vaias e gritos de outros torcedores, que provavelmente já estavam, assim como ele, sorrindo sentados em seus sofás, com uma cerveja na mão. Alguns gritos femininos de desgosto pareciam denunciar torcedoras fanáticas, acompanhando seus namorados, familiares ou amigos... Ou, então, espectadoras assíduas da novela, provavelmente em alguma parte de suspense ou romance.
Gérson maldisse a companhia energética, soltou alguns palavrões em voz baixa (costume ainda dos tempos de casamento, quando sua ex-esposa não gostava de ouvi-lo pronunciar tais palavras) e concluiu que, a melhor atitude seria procurar uma vela, uma caixa de fósforos e tentar tatear até o balcão da cozinha, a fim de posicionar a cerveja de forma que não esbarrasse nela.
O mais difícil não foi posicionar a lata de cerveja, mas foi preciso iniciar uma verdadeira epopeia heroica atrás de uma vela e uma caixa de fósforos. Onde os tinha deixado mesmo? Não é possível, sempre os deixava no mesmo lugar, para não perdê-los! Naquela partezinha da janela da cozinha, em cima da pia!... Lembrou-se então da sua empregada doméstica. Ela tinha assim uma certa mania de colocar as coisas em locais, digamos, menos acessíveis. Gérson não sabia ainda se ela sarcasticamente gostava de fazê-lo procurar as coisas pela casa, ou se só detestava ver coisas “fora do lugar”. A cozinha e a sala (mais especificamente o sofá e a TV) eram os locais que ele mais bem conhecia do apartamento novo, que adquira logo após a separação, fazia apenas poucas semanas. Ainda não tinha passado pela situação de ter de tateá-lo para procurar coisas como uma vela e uma caixa de fósforos numa noite sem lua. “E essa luz que não volta?!”.
Nada de luz. Os minutos iam passando, e ele só conseguia pensar no jogo... Bom, na vela e nos fósforos também, que deviam estar em algum lugar do depósito. Mas... Onde é que ele ficava mesmo? Gérson foi tateando paredes, pois no escuro total é muito difícil se ter direção num lugar que pouco se conhece. Enfim, chegou a uma porta. Como de costume, as chaves estavam penduradas na fechadura. “Para que serve uma porta trancada se as chaves estão na porta?”. Não teve tempo de explanar sobre o assunto. Destrancou a porta e a abriu. Ainda não podia ver nada, mas percebeu alguma coisa de estranho. Onde estavam as prateleiras que apertavam o corpo contra a parede? Tateou mais um pouco...
Um gemido alto o fez levar um susto daqueles. Seu coração quase veio parar na boca. Um rato? Mas como poderia trombar num rato que parecia ter por volta de 1,60m?! Não é um rato, é...
- Desculpe! - falou uma voz macia.
O susto dele agora foi maior. A empregada ficara trancada no depósito?! Não, que ideia mais louca! E não era a voz dela. Nunca tinha ouvido voz mais bonita em toda sua vida. Por um momento, em sua confusão naquele escuro todo, pensou por um momento em ter se apaixonado por aquela voz. “Deixe de bobagens, Gérson... Fale alguma coisa!”

-I-imagina, a culpa foi minha... - respondeu, sem saber. - Desculpe o comentário maluco, mas eu achava que tinha entrado no meu depósito.

Ela riu. E que riso maravilhoso! 

-Estamos no corredor do andar. Talvez tenha se confundido... Você é novo aqui, não é? 
-Sim... Me mudei há poucas semanas. Acho que não nos conhecemos ainda...
- Com certeza não. Eu trabalho demais, sabe? Quase não paro em casa.
É, eu também. Deve ser por isso.

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos.

-Estranho nossa primeira conversa ser logo hoje, nessa situação... - Ele tentou estender a mão, mas se deu conta de que não enxergava nada. - Prazer, Gérson.
- Lúcia. Não se preocupe. Na verdade, acabei de chegar em casa. Não gostaria de entrar? Para termos uma conversa melhor entre vizinhos.

Gérson se surpreendeu com a desenvoltura e simpatia da moça. Sentiu-se confortável naquela situação, mesmo sem saber se deveria aceitar o convite. Lúcia parecia ser alguém que não se importava com convenções sociais, com regras vazias e não demonstrava medo por acontecimentos inesperados. Sendo levado por aquela onde destemida e animada, Gérson respondeu:

- Claro, adoraria entrar. - Ele pôde perceber o sorriso largo de Lúcia.
- Venha, por aqui. Deixe-me só pegar as chaves para abrir a porta.

Lúcia passou a tatear vigorosamente sua bolsa a procura das chaves. Enquanto Gérson esperava, sentiu com estranheza algo que encostava em sua perna e parecia dar farejadas para todo lado. Dessa vez, só podia ser uma coisa: o rato! Ele deu um pulo que, não fosse pelo sedentarismo das noites de futebol na TV e cerveja, teria feito com que chegasse ao teto. Lúcia prendeu a respiração de susto.

- O que foi?! Aconteceu alguma coisa?
- Um rato! Farejando a barra da minha calça... Um rato bem grande, eu diria!...

Lúcia se recuperou do susto, suspirou aliviada e riu novamente. Ai, ai... Dessa vez o suspiro foi de Gérson.

- Não é um rato, é minha cadela da raça labrador! - E riu mais ainda. - Luz, diga olá para nosso novo vizinho!
Gérson sentiu algo que pulava nele com muita festa, mas Luz não latiu. Até achou interessante, pois nunca ouvira falar de uma cadela com aquele nome tão peculiar...

- Pronto, garota! Agora já estamos devidamente apresentados. Luz se chama assim, pois é ela que ilumina meu caminho. É minha única companhia. Não é, coisa fofa?

Lúcia acariciou vigorosamente a cadela, que pareceu ficar animada.

-Agora Luz entrará em seu período de descanso. Ela me ajuda muito!
- Claro... - Gérson deu um sorriso amarelo sem entender, mas, ainda assim, achou interessante como Lúcia tratava a cadela como se fosse um membro de sua família.
Venha,  entre!

Gérson entrou no apartamento de Lúcia como quem adentra um templo. Pela reverência, sim, mas também por não estar enxergando absolutamente nada naquela escuridão.

Não precisa fazer cerimônia... Segure a coleira que Luz te levará até o sofá.

Claro... pensou Gérson. Afinal, o nome dela era Luz, não? Bem que, naquele momento, ele queria que a outra luz estivesse ali, não para que ele pudesse ver o futebol, mas para que conseguisse ver o rosto de Lúcia... Não estava se aguentando de curiosidade.
Gérson e Lúcia conversaram por muito tempo, mas para os dois o tempo simplesmente não existia mais. Falaram sobre tudo: trabalho, lazer, esportes, artes, filhos, casamento e, é claro, sobre a luz.

- É... Não parece que a luz vá voltar logo.
- Ela já está aqui do meu lado, acho que estava com sede.
Como? Ah, sim, a Luz... Claro. - Gérson se divertiu com a confusão. Lúcia, por seu lado, mudou logo de assunto. E como era falante, alegre, cheia de vida. Ela sim, parecia a luz na vida de Gérson.

Algum tempo depois, a luz, aquela que interrompeu o jogo, voltou aos apartamentos, ao bairro e a grande parte da cidade. Gérson estava tão acostumado à escuridão, que teve de ficar com os olhos fechados por alguns segundos. Não se ouviu os gritos dos torcedores ou das espectadoras das novelas, pois àquela altura tanto novela quanto jogo já haviam terminado.
Ao abrir os olhos, Gérson teve a sensação de estar na presença de um anjo. Pele alva, lindos lábios, longos cabelos, olhos...

-Finalmente, a luz voltou! - disse Gérson, feliz por sua descoberta.
-Como é?

Gérson estranhou.

-Estávamos sem luz há algum tempo...
- Ah, desconfiei mesmo que estávamos sem luz... Mas, a Luz está aqui para isso, claro ou escuro não fazem muita diferença pra mim...
Então Gérson compreendeu. Lúcia não podia enxergar, e Luz era seu cão-guia. Em nada aquela informação fez diferença em sua percepção daquela mulher. Ela não precisava nem de luz, nem mesmo da Luz, pois tinha brilho próprio.

- Já que você agora pode ver, que tal jantarmos? Estou morrendo de fome desde que cheguei... - E sorriu seu lindo sorriso.

E um jantar se transformou em jantares. Beijos se transformaram em promessas. Sonhos em namoro. E o namorou, depois de um tempo, não mais os satisfazia. Marcaram o casamento. Gérson teve dificuldade de encontrar uma aliança que brilhasse tanto quanto Lúcia.
Após a cerimônia do grande dia, a festa. Todos os convidados já presentes, divertindo-se entre parentes e amigos. Luz, como sempre, iluminando o caminho da noiva. Em determinado momento, o breu. Ouviu-se uma grande vaia coletiva, enquanto Lúcia perguntava à sua mãe:

-O que aconteceu, mamãe?

Gérson entra com uma lanterna voltada para seu rosto, falando ao microfone.

- Acalmem-se todos, isto não é um apagão! Foi assim que Lúcia e eu nos conhecemos. E foi dessa forma que eu realmente consegui enxergá-la, e ver o mundo através da luz dela.

Luz inesperadamente deu um latido sutil.

- Desculpe, Luz, mas dessa vez não estamos falando de você.

Gérson aproximou-se de sua esposa, já em prantos, e terminou.

- Claro e escuro não fazem mais diferença para mim, pois você ilumina meu caminho, sempre.

Grandes aplausos, choro de tias desavisadas, tilintar de copos, farejadas de Luz e alguns tropeços bastante sonoros de alguns dos garçons. A festa correu como realmente devia, da forma como Lúcia via o mundo: cheio de sons, de cheiros, de abraços, de carinhos.
E a vida de casados foi assim também. Nem sempre os estímulos aos sentidos eram agradáveis, pois Lúcia sempre dizia que não acreditava em “felizes para sempre”, e Gérson já havia vivido isso na pele. Mas, enquanto eles tivessem Luz e aquela escuridão na qual se conheceram, estariam bem.

sábado, 24 de dezembro de 2011

YULE

E a Roda roda novamente...
A alegria retorna pelo ventre da Deusa,
Madura e mãe zelosa,
com o filho da promessa nos braços.
Ele ainda tímido, em sua pequenice,
mas com a força latente em seus raios.
Num traço de meninice,
Anda engatinhando sobre a neve espessa,
porém sem medo,
seguro de seu potencial.
Sabe que é na maior escuridão que reside a esperança,
um ponto zero do universo que guarda em si toda a força,
Um entrelaço do tempo e do espaço,
Onde a semente hibernada espera,
mas já prenuncia seu grandioso futuro de árvore madura...
Onde estamos é onde precisamos estar,
quando estamos é quando precisamos estar.
Honremos nossa força latente,
iluminada e imponente,
despertemos os planos e sonhos adormecidos
por expectativas e sonhos irreais
para nos prepararmos para os demais
meses que virão...
Como um sopro de bênção,
ouçam sua voz interior,
ela é a voz da Deusa e do Deus em você.
Cuide de suas sementes, alegre-se com a promessa,
e plante apenas as que valem a pena.
Nunca se esqueça:
Como a grande roda que nunca cessa,
a escuridão prenuncia a luz,
a luz prenuncia a escuridão,
num ciclo eterno que não tem pressa...

sábado, 19 de novembro de 2011

Esquecimento

Devo esquecer...
Não porque queira,
Não apenas para rever
um sentimento que vive à beira
de um ataque de nervos...

Coisas que não sei
somente por não ter vivido,
Mas que pulsam para fora dos sentidos
rumo a cantos desconhecidos
de onde o amor ainda é rei...

Ainda assim, devo esquecer,
não porque não me lembre mais,
mas porque não sou capaz,
neste momento, de sobreviver
à morte precoce por desilusão...

Invento momentos que não vivi,
dores que não senti,
sentimentos que não conheço,
pois só assim, esqueço...

Esqueço que ainda sou mulher,
que ainda posso viver momentos
sem lamentos e tormentos,
todos esses grandes inventos
reprimidos no coração...

Tendo o mundo numa colher
para colher e recolher sonhos que me escapam,
avançam, ultrapassam
minha por vezes ingênua compreensão...

Perdão...
Não pretendia me sentir assim.
Tanto começo e tanto fim
fizeram-me pensar mais em mim,
ou menos...

Nos mesmos termos,
Juro que não pretendo
preservar uma fantasia sem pé nem cabeça,
mesmo que com coração, mente e sonho...
E, ainda que eu esqueça,
o que poderia ser mais medonho
Que esse desejo de ter algo
que eu nem sei o que é?...


sábado, 12 de novembro de 2011

O Silêncio

Não costumo falar sobre religião, crença ou fé com frequência, muito menos usar exemplos de livros sagrados. Mas, hoje, peço permissão à minha escrita imparcial para fazer aqui uma citação de um livro que a grande maioria conhece e, se não conhece, já teve algum contato com ele: a Bíblia.
Em uma passagem da Bíblia se diz que “No princípio era o Verbo.” Sem entrar em discussões religiosas, permitam-me defender minha ideia. Entendo Verbo, nesse caso, como ação. No princípio era a ação. Entretanto, vislumbrando de longe o universo e presenciando descobertas sobre seu movimento, suas mudanças e as teorias sobre a sua criação e recriação, mesmo a pessoa leiga a respeito da ciência dos astros pode perceber que o universo é, principalmente, feito de pausas e de silêncio. Não só pelo fato de tudo nele ser vácuo e o som como o conhecemos precisar de um meio palpável como o ar para se propagar, mas também pelos grandes períodos de quietude em que tudo parece estático, principalmente para si mesmo. Ainda que não pare em seu movimentar eterno, são nas pausas e no silêncio que o universo faz sua transformação.
Em nosso mundo de hoje, onde somos obrigados a produzir e a superar nossos limites em milésimos de segundos, nossos sentidos são bombardeados por estímulos de todos os lados. Embora seja difícil evitá-los, podemos não tatear o que vemos, fechar os olhos para não enxergar, retirar-nos de um ambiente para não sentir um cheiro, deixar de provar o sabor de um alimento. Mas experimente, por um momento, não ouvir. Protetores auriculares existem, claro, posso ouvi-los dizer. Mesmo assim, as nossas células auditivas são sensíveis e as primeiras a entrar em funcionamento em nosso corpo em formação. É possível, ao deitar-se para dormir, ouvir relances de sons com os quais nos deparamos durante o dia, como se tivessem ficado impressos em nossos ouvidos. Ao pensarmos assim, podemos entender a necessidade do silêncio, de adentrar o Nada que nos transporta para o preenchimento.
São inúmeros os relatos de grandes descobertas que foram feitas em uma pausa, quando o corpo e o cérebro estavam em silêncio. Arquimedes que o diga. Costumamos fugir do vazio e do silêncio como se ele fosse improdutivo, desconfortável, ameaçador. O buraco negro é um desafio para os astrônomos, pois ele é aquele vazio e aquele silêncio que suga para si tudo que parece fértil e pleno. Se fôssemos a fundo em sua natureza, entenderíamos que ele é uma pausa do universo, algo que já havia sido grandioso e passa pela fase de nutrir-se, literalmente, para que algo possa ser transmutado, transcendido.
Uma música, mesmo a mais frenética, não existe sem as suas pausas. É um silêncio quase imperceptível, que mantém a harmonia do conjunto. O recurso de retirar ou colocar mais pausas numa música é usado para suscitar determinado sentimento no ouvinte. O corpo dá pausas entre um movimento e outro. Mas não pense você que o silêncio não proporciona nada além da pausa, do descanso às nossas células auditivas hiperativas, da nutrição para a mudança. Muito pelo contrário. É nele que reside o pulsar criativo, quando vamos buscar em algum lugar que desconhecemos dentro de nós, ou no universo, que de outra forma não poderia ser acessado, e que nos proporciona a resposta que procuramos. Fazer muito ruído em volta de um assunto, tema, trabalho, sentimento ou até uma pessoa, atrapalha o escutar da solução.
Deixe-me fazer uma pequena modificação no trecho citado no início deste texto: “No princípio era o Silêncio.” Antes do verbo, existiu o silêncio... Antes da ação, existiu a pausa. E um não existiu mais sem o outro. Ao invés de acharmos que o divino reside na palavra, na ação, no nome, no sentido, devemos lembrar que ele reside também no silêncio, na pausa, no descanso, na meditação. Buscar a si mesmo requer também calar-se e apreciar. Na contemplação reside a solução. No princípio, e também no fim, está o silêncio...

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ode à madrugada

O que há na madrugada
que inspira os pensamentos?
Será a proximidade do sonho,
a distância da alvorada
ou os pontos luminosos do firmamento?
Antes da Lua Cheia estar a pino,
o vento sopra feito menino,
brinca com as folhas, pimpolhas,
atiça os cabelos e os desejos carnais
dos casais em alvoroço.
De madrugada é imponente e maduro,
forte combatente das árvores sonolentas,
preguiçosas em seu oxigênio,
gerando o gênio da própria insolência...
De madrugada o vento é barão,
sopra robusto e seguro
como que vindo com pretensões europeias,
falando-me das doces epopeias dos heróis...
O que há na madrugada
que me tira dos meus lençóis
e me atira nos braços do devaneio,
me traz por teus abraços o anseio
e me faz abrir a poesia?
Quando do raiar do dia,
com sua incessante correria,
os pensamentos me fogem
como lépidas borboletas,
dançando feito bailarinas espoletas,
e somem, e a inspiração consomem...
Mas ainda sei que ela,
a doce dama dos mortais,
a grande deusa dos portais,
retornará soberana sucedendo a noite,
Anciã, Mãe e Donzela,
livrando-me do corte do açoite,
que ao nascer do Sol dilacera os sonhos...
Na madrugada voo para onde quiser,
mudo de direção se me aprouver.
Busco a ti, chego a mim,
chegando sempre ao doce sim sem fim...
O que há na madrugada
que inspira os sentimentos?


Brasília, 09 de novembro de 2011. (3:38h – 3:59h)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Procura-se

Quem me conhece sabe que não gosto de clichês, coisas óbvias ou sem nada a se descobrir nas entrelinhas. Mas, improvavelmente, este será um texto um tanto quanto clichê, e nem tanto. Falar sobre amores e desamores sempre será um clichê, mas é possível ver a magia por trás da obviedade se os abordarmos de formas inusitadas...
Uma das minhas “atividades” de domingo ultimamente tem sido olhar o caderno de empregos no maior jornal da cidade. Época de vacas magras (ou vacas à beira da morte por desnutrição), crise financeira, bolsas que sobem e descem e uma carteira permanentemente vazia me levaram a ser quase uma expert em anúncios do tipo. Um dia me peguei analisando atentamente cada um deles, como quem realiza um achado científico. Títulos, formatos, erros, nada me escapava. Achei aquilo divertido e, obviamente, esqueci-me da minha árdua tarefa de me ater ao conteúdo do que lia. Já não eram mais anúncios de jornal, colocava minhas palavras em cima de cada um deles, à procura do anúncio perfeito. À procura? “Procura-se”. `Procura-se? Há quanto tempo não via um anúncio daquele tipo! Aquilo me deu uma ideia clichê, mas encantadoramente inusitada.
Todos procuramos algo. Um emprego, um carro, um imóvel, um sonho, um amigo, um amor... Certo, certo, eu disse que não gosto de clichês, mas quem não é clichê nesta vida? Se todos compartilhamos de um mesmo sentimento ou de uma mesma procura, isso não quer dizer que seja algo óbvio, porque cada um tem sua forma de procurar.
Comecei a imaginar anúncios do tipo “Procura-se” para o amor. Qualquer tipo de amor. De mãe, de pai, de amigo, de animal, de homem, de mulher, de amor-próprio... De amor. Como eles seriam? Existiriam os objetivos e concisos, que se contentam com pouco:
Procura-se amor, homem, goste de crianças, não fume, durma.”
Outros poéticos e arrebatadores:
Procura-se um amor, além de gênero e espécie, além de alegria e dor, para compartilhar momentos em série. Não exijo experiência! Traga apenas a mim a vivência.”
Alguns poderiam ser melodramáticos, cheios de nuances dignos de uma grande tragédia grega:
Procuro-te, ó, metade perdida! Minha alma não terá aconchego sem tua presença! Tu, que trarás a mim teus segredos, repousa tua fronte em meu peito, para que este coração volte a pulsar!”
Outros, misteriosos em seu grave suspense:
Procura-se... Se quiser saber, procure-me.”
Quem sabe os sérios e formais?
Procura-se pessoa comprometida, mas não casada, que possua aptidões cooperativas. Ofereço alimentação, moradia e demais benefícios.”
Por que não os engraçados, dignos de um pastelão?
Procura-se uma pessoa que seja alguém, que goste de alguma coisa, que venha de algum lugar e que saiba fazer algo. Ei, parece com você!”
Por fim... Não poderia faltar como seria meu anúncio, se eu fosse fazer um:

Procura-se alguém com um passado, que viva a vida no presente e pense sempre que haverá um futuro.
Procura-se alguém para amar, que queira e precise ser amado, alguém que poderia ser eu mesma, mas que deveria ser outra pessoa.
Procura-se uma pessoa que compartilhe comigo o mesmo universo, mesma galáxia, mesmo planeta e, no futuro, a mesma cama.
Procura-se uma pessoa que goste de crianças, animais, noites estreladas, luas cheias, árvores frondosas, mulheres, homens, novos e velhos, e o que mais encontrar pela frente.
Procura-se uma pessoa que não goste da injustiça, do ódio, da indiferença, da vingança, do pesar, do sofrimento, e tudo mais que possa prejudicar aquilo que gosta.
Procura-se uma pessoa que lute pelo que acredite e que acredite naquilo pelo qual luta, que fale o que faz e que faça o que fale.
Procura-se alguém que conheça seus limites e tente superar aqueles que podem ser superados.
Procura-se alguém que conheça e compreenda os próprios defeitos e que tente ser uma pessoa melhor a cada instante.
Procura-se uma pessoa que saiba fazer uma coisa que ninguém sabe e que tenha aquelas características bobas que todo mundo tem.
Procura-se alguém que fale e pense de acordo com o que sente, e que sinta aquilo que pensa e fala.
Procura-se uma pessoa que tenha princípios, crenças e convicções, mas que não sejam tão inflexíveis a ponto de não respeitar os princípios, crenças e convicções alheios.
Procura-se uma pessoa que se apaixone, ame e viva com a mesma intensidade todos os dias, ou um pouquinho mais nos dias de primavera.
Procura-se alguém que fique feliz ao ver a chuva, que vibre com um broto de flor, que se alegre com um desenho feito por uma criança, e entenda que a vida, na verdade, é simples como cada uma dessas coisas.
Procura-se alguém que também procure, para que possamos nos encontrar; alguém que, ainda que não tenha nada do que eu procure, e eu não tenha nada do que ele procure, nos encontremos num ponto no meio, onde tudo é exatamente do jeito que procuramos.”

Depois de pensar tudo isso, deixei minhas aventuras no mundo dos anúncios de lado. Afinal... Será que alguém responderia a um anúncio como esse? Diz um ditado popular que quem espera sempre alcança. Eu diria que quem procura, com todo o coração, um dia encontra... Mesmo que não seja nada daquilo que procurava.

sábado, 22 de outubro de 2011

ConTemplo

Dedicado às amadas mulheres do grupo Girassoll.

Minha alma flutua
como leve pluma no ar...
Pois já aprendi a transitar
dentro de teus domínios...

Meu sangue ecoa teus desígnios,
pulsa dentro de mim a certeza
de ter-te visto,
de ter-me conhecido,
de fazer parte
de tua natureza,
a beleza dentro de nós...

Energizei meu corpo,
medi meus limites
e protegi seu alcance,
iniciei-me em meus segredos,
desafiei meus conceitos,
libertei-me das amarras,
teci a teia da minha vida
e preservei-a com a nutrição do meu seio,
dei-me poderes com os véus
do passado, presente e futuro,
criando meu universo,
unindo-me a ti,
entendendo que sou parte do Todo
e o Todo é parte de mim...

Contemplo tudo pelo que passei até aqui,
orgulho-me de ter servido,
honrado,
amado a mim e a todos os seres,
sentindo-me agente do meu destino
e nunca mais mera coadjuvante do sentido!

Faço meu caminho por todas as câmaras
do meu Templo íntimo,
Chego a ti,
Chegas a mim,
Unindo-nos numa só...

Aqui é o meu local secreto onde me revigoro,
ouço as mensagens,
acalento meus sonhos,
aprendo reverenciando meu passado,
deixo para trás o obsoleto
e sigo em paz
mestre das minhas mil faces,
dos meus nove elementos
em um só Tempo,
Em um só Templo
onde repousa minha Sabedoria...

Brasília, 23 de outubro de 2011.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O mais feliz dos felinos

Dia 07 de agosto, fez a passagem um dos mais queridos amigos que já tive: meu gato, O'Malley. Seu nome, inspirado por um desenho que adorava quando criança, foi dado por mim. Parece que quando damos um nome a algo ou alguém sua existência assume outra dimensão, passamos a sentir e perceber que sua simples presença é algo único, mesmo que existam tantos outros aparentemente iguais. No caso do O'Malley, dizê-lo único talvez seja pouco...
Neste mesmo dia, meu filho, durante o banho, parou suas atividades por um minuto, e passou a olhar fixamente para um ponto no infinito. Por um tempo, não tomei conhecimento do seu comportamento, inusitado para uma criança tão pequena. Em seguida, ele olhou para mim e disse baixinho uma frase ininteligível. Cheguei próximo a ele e pedi que repetisse a frase. “Pisei no rabo do O'Malley.” Estanquei por uns segundos, surpresa. Evitei comentar ou chorar a morte de meu amigo na frente dele, por supor que uma criança de tão pouca idade não entenderia. Logo em seguida, ele completou: “Tadinho do O'Malley. Desculpa, O'Malley!” Como se pedisse desculpas para o próprio. Repeti a frase como se fosse uma brincadeira, mas, por dentro, chorava.
Coincidentemente, semana passada resolvi ajudar meu filho a desenvolver o hábito de adormecer sozinho, e não em meu colo como de costume. Resolvi fazer isso de uma forma, digamos, mais educativa. Comecei a contar sempre a mesma estória, acrescentando uma parte a cada noite. Meu filho começou a se interessar e toda noite, ao se deitar, já me pede: “Mamãe, conta a estorinha?”. Imediatamente, eu me ponho a contar a estória. Mas havia um personagem que ainda não tinha conseguido definir, e ele mudava de forma diversas vezes na minha cabeça. Como representá-lo? Não era o personagem principal, obviamente, mas era aquele tipo de personagem essencial sem o qual a trajetória simplesmente não se completa. Sou apaixonada por esse tipo de personagem, ora misterioso para ser decifrado, ora meio louco apontando para direções contrárias, ou ainda o sábio que apenas deixa que aprendamos sozinhos. Era assim que o queria: misterioso, meio louco, sábio... Hoje, sem muito esforço, esse personagem se apresentou para mim, e a estória pôde ser contada... E o rio seguiu seu fluxo rumo a uma terra distante...
Eis aqui a estória, um pouco mais rebuscada:
Era uma vez um menino. Seu nome? Bem, cada pessoa o chamava de uma forma diferente, de acordo como essa pessoa o via: ora era menino, ora era moleque (nome que ele nunca gostou!), às vezes ainda era aquele ali. Mas o nome que ele mais gostava, sem dúvida, era o nome que sua mãe tinha lhe dado: Nilo. Sua mãe dizia que ele, como um um grande rio cujas margens não se podiam enxergar, era vasto em pensamentos e atitudes. Mas mais vastos ainda eram seus sentimentos.
E ele, persistente e de vontade forte, cismava em dormir somente no colo de sua mãe. Um belo dia, mamãe (ela tinha seu nome, mas Nilo gostava de chamá-la assim) resolveu contar-lhe uma estória antes de dormir.
- Você quer ouvir? - disse mamãe.
- Quero sim! - respondeu Nilo, com os olhos brilhando de curiosidade.
- Pois então, deite-se em sua cama.
Prontamente, Nilo correu para os lençóis e de lá debaixo esperou que a mamãe começasse. E ela começou...
- Era uma vez...
'Era uma vez um principezinho, que morava num reino muito, muito distante. Lá, as árvores eram verdes e cheias de frutos, e os campos floridos e cheirosos durante boa parte do ano. Mas aquele principezinho, teimoso e um tanto carente, só queria dormir no colo de sua mãe, a bela rainha. Um dia, cansada de tantas noites em claro, a rainha fez um pedido para a primeira estrela que apareceu no céu:
- Querida estrela... Mande para mim a magia das fadas, para que meu principezinho consiga adormecer sozinho, e assim conhecer os encantos da terra onde sempre é verão!'
Conforme Nilo escutava, ele próprio virava o principezinho e sua mãe, a rainha. Puf! Lá estava ele na terra tão distante. Ele ouvia e vivia a estória ao mesmo tempo.
'Como a rainha fez aquele pedido com muita devoção, uma das estrelas desceu do céu, em forma de fada. Sim, uma fada! Uma linda fada de asas rosas e azuis, longos cabelos castanhos e orelhas pontudas, porém harmonicamente dispostas junto a um rosto belo e carinhoso. Seus olhos eram verdes como a grama e profundos como o mar. Ela então sorriu para a rainha, que quase chorava de emoção.
- Não chore, bela rainha. Seu pedido será atendido esta noite! Coloque o principezinho para dormir e eu farei o resto.
O sorriso daquela fada era tão sereno e passava tanta verdade, que a rainha não se conteve e perguntou o nome daquela tão doce criatura.
- Sheila. - respondeu a fada. - Mas pode me chamar pelo nome que quiser. Contanto que seja com respeito e amor, este nome terá poder e me trará até você.
A rainha agradeceu muito à pequenina fada, e foi correndo fazer o que foi combinado. Chegada a hora, ela colocou o principezinho em sua cama, sentou-se ao seu lado e esperou que o milagre acontecesse.
- Não, mamãe, quero dormir no seu colo! - disse o principezinho.
Ela o olhou com seus doces olhos de rainha, boa como era, mas manteve-se firme em sua convicção. Afinal, ela havia combinado com Sheila, a bela fada de asas rosas e azuis, que deveria chegar a qualquer momento!
Mais uma vez, o principezinho reclamou. Queria dormir no colo da rainha. E nada de Sheila, a fada, chegar. A rainha, então, começou a ficar desesperançosa, mas ainda aguardou mais um instante. E falou, bem baixinho, olhando para a janela:
- Sheila deve ser mesmo uma estrela...
Foi quando pôde ver, por entre as árvores, pequeninas asas que se mexiam. Era Sheila! O poder do nome a havia chamado! Sem que o principezinho percebesse, entrou em seu quarto e sacudiu as asas sobre a rainha, boquiaberta com a proeza daquele pequenino ser. Imediatamente, sem mesmo se dar conta, a rainha pôs-se a contar uma estória, que o principezinho acompanhou atentamente:
-Era uma vez...
Aos poucos, as palavras transportaram o principezinho para o lugar mais lindo que ele já havia visto em toda sua vida. O verde da grama era mais verde, o Sol brilhava com mais intensidade, o céu era mais azul, as águas faziam melodias que pareciam orquestradas, os animais saltavam e corriam em movimentos coreografados, até o canto dos pássaros soava diferente! Tudo era ainda mais bonito do que em sua terra, pois lá parte do ano a neve cobria os campos... O que não deixava de ter sua beleza e seu valor, mas era uma época em que o principezinho só pensava em se recolher no colo de sua mãe, a rainha... Mamãe!, pensou o principezinho. Será que ela estaria preocupada com seu desaparecimento? Onde estaria ela... Por um instante sentiu falta de seu aconchego... Mas só por um instante. Logo uma construção magnífica chamou sua atenção: era um enorme castelo que parecia feito de luz. Suas paredes eram transparentes e reluziam como as cores do arco-íris.
O principezinho chegou mais perto e, mesmo que o castelo parecesse estar a quilômetros de distância, em poucos passos estava em frente ao portão. Ali percebeu que algo estava estranho. As montanhas para além do castelo começavam a encher-se de neve e o céu aos poucos ficava cinzento. Será que me enganei, e aqui também tem inverno?, pensou mais uma vez o príncipe. Mesmo sabendo da existência das estações, ele estranhou a mudança repentina. Havia realmente algo errado naquela terra cheia de encantamento...
Mal estendeu a mão para tocar o belo sino que brilhava pomposamente ao lado do portão, que certamente anunciaria sua chegada, um pequenino duende apareceu timidamente por uma minúscula porta ao lado do sino. O principezinho, sem saber ao certo o que dizer, abriu a boca para falar.
- Entre, príncipe Nilo. - disse o duende com a voz firme, porém gentil. - A rainha das fadas está a aguardá-lo.
- Rainha das fadas? - falou Nilo, sem pensar. Mas não estava admirado por aquela terra ter uma rainha, talvez tão bela quanto sua própria mãe.
-Sim, Sua majestade, a rainha das fadas. - Ele fez uma pausa. - Você veio de uma terra distante para falar com a rainha, não é? Ela mesma me disse para ficar à sua espera, antes mesmo de o sino badalar.
O príncipe Nilo realmente não sabia o que dizer. Achou melhor não contestar as palavras do duende. Afinal, a rainha devia ser tão benigna quanto as outras criaturas daquela terra. Mas olhou ainda uma vez para as montanhas cheias de neve e as nuvens cinzentas... E teve um pouco de medo.
A rainha era realmente tão bela quanto sua mãe. Tinha lindos cabelos anelados, e a face rósea como pequenas pétalas de uma flor delicada. Mas trazia uma discreta tristeza em seu semblante, como se tivesse perdido algo ou alguém querido. Tristemente o principezinho pode notar que seus olhos brilhavam como pequenos cristais com a iminência do choro. Sem nem mesmo pensar em iniciar uma conversa para que se conhecessem melhor, Nilo falou:
- Com licença, Vossa Majestade...
- Chame-me de Tânia. - disse docemente a fada.
O principezinho sorriu.
- Tânia... Desculpe a intromissão, mas parece um tanto triste... Como pode uma bela rainha ser triste assim? Será por conta da neve nas montanhas e das nuvens cinzentas?
A rainha Tânia olhou para o príncipe Nilo com o olhar mais gentil que poderia esboçar. Porém com ainda mais tristeza.
- Minha tristeza de fato tem a ver com as mudanças na paisagem, querido príncipe Nilo. Mas são apenas consequências de uma mudança ainda maior... Uma perda irreparável para nossa terra. Minha filha Sheila, a princesa das fadas, desapareceu há poucos dias. Ninguém sabe onde ela possa estar. Você, como príncipe, deve saber o quanto uma princesa faz falta a um reino. E, assim como eu, imagino que haja também uma rainha sofrendo o seu desaparecimento...
O príncipe Nilo lembrou-se com tristeza de sua mãe, e deu-se conta que ele também havia desaparecido. Por um momento, teve medo de não conseguir voltar.
- Sábia rainha... Como posso ajudá-la a encontrar sua princesa? Eu também apareci em vossa terra sem saber como, e me lembro de que a última coisa que vi antes de aparecer aqui foi uma bela borboleta de asas rosas e azuis sobre a coroa de minha mãe...
A rainha Tânia pareceu tomar uma flecha no coração.
- Essa é minha querida Sheila! Então ela está em seu mundo? - Ela parecia muito preocupada.
- Por que fala como se fosse assim tão terrível?
- Tudo na natureza, na energia e no tempo precisa estar em um equilíbrio. Um equilíbrio que se adapta as mudanças... Por isso você está em nossa terra, e ela teve de ir para sua terra. A princesa Sheila só retornará se você estiver disposto a retornar.
O príncipe Nilo parou para pensar sobre as palavras da rainha. Mesmo em sua pouca idade, podia entender e sentir o que lhe tinha sido dito. Por um momento, hesitou. Queria passar mais tempo naquela terra na qual a grama era mais verde, o céu mais azul, os animais mais felizes e os rios faziam música! Mas sentiu saudades de sua mãe... E percebeu que um lugar só é realmente importante, quando nele estão as pessoas que amamos. Assim, conseguiu conectar-se ao coração da rainha e sentiu a sua tristeza. Talvez também o inverno tivesse chegado lá na sua terra...
- Está certo, rainha Tânia, eu vou ajudá-la a recuperar sua princesa. Se for preciso que para isso eu mesmo retorne, assim o farei. Mas... Infelizmente não sei o caminho.
- Não há caminhos que levam de volta. - disse a rainha. - O único ser que pode lhe dizer como fazê-lo é o sábio que vive atrás da cachoeira de cristais.
Como era interessante aquela terra!, pensou o príncipe Nilo. Uma cachoeira de cristais? Não deveria ser nada difícil...
- É só me dizer o caminho, que partirei agora mesmo. - disse ele.
- O caminho é tortuoso e muda com frequência. Mas se você seguir o pássaro preto, que procura pelo brilho do cristal, nunca irá se perder.
Pássaro preto, pássaro preto... O príncipe saiu repetindo para não esquecer. Bem na entrada do castelo, lá estava ele. Todo preto. Assim que o pássaro alçou voo, o príncipe Nilo o seguiu.
Em pouco tempo, estava à frente da cachoeira de cristais, onde inúmeros pássaros pretos repousavam da viagem. Aquela paisagem era ainda mais bonita que a floresta próxima ao castelo, mas o céu era ainda mais cinza, um contraste que não podia passar despercebido.
Príncipe Nilo se aproximou lentamente da cachoeira de águas fortes que soavam como um coral de vozes femininas. Passo a passo adentrou a caverna que havia abaixo dela, mas lá tudo era escuro. Não era possível ver nem sequer os próprios pés. Logo após o terceiro passo, príncipe Nilo ouviu um barulho que nunca havia ouvido na vida. Era como a mistura do gemido de um filhote e a melodia de um trovão. Pensou em recuar, desistir daquela difícil façanha, mas rapidamente se lembrou das duas rainhas tristes. Tinha de continuar! Para seu espanto, ouviu uma voz grossa, porém melosa, que disse:
- Não vai se desculpar, não, menino?!
- D-desculpe... - gaguejou o príncipe Nilo. - Não tinha visto que havia pisado no senhor...
- Está desculpado. Agora o que vem fazer aqui sem trazer sua luz?
- Luz? - retrucou o príncipe.
- Sim, menino Nilo. Sua luz interior! Ninguém pode adentrar terrenos desconhecidos sem trazer sua luz. Do contrário, como faria para iluminar os mistérios?
O príncipe Nilo espantou-se mais uma vez. Tinham acabado de se conhecer, e aquele estranho companheiro de caverna já sabia seu nome? Não se lembrava de ter se apresentado. De uma hora para outra, encheu-se de coragem e perguntou:
- Com licença, senhor, mas... Como sabe o meu nome?
- A questão não é a pergunta, menino Nilo, e sim a resposta. Foi ela que veio procurar aqui, não é mesmo?
Por um momento, o príncipe Nilo se irritou com a conversa. Quem era aquele ser misterioso que apenas falava em enigmas? E qual era seu nome?
- Você sabe qual é a pergunta certa para obter a resposta que deseja...
- Como devo chamá-lo, senhor?
O ser misterioso pareceu regozijar-se com aquela pergunta, como um cientista que finalmente consegue chegar a uma descoberta.
- Bravo, menino Nilo! Esta é a pergunta certa. Você deve me chamar por vários nomes, mas sou mais conhecido nesta terra como o sábio da cachoeira de cristais.
O príncipe Nilo ficou sem reação. Então desde o começo, sem saber, estava diante do grande sábio? Mas ele teve a sensação de ter pisado em algo macio e felpudo...
- O senhor é...
- Meu nome é O'Malley, o mais feliz dos felinos! Ou simplesmente... Um gato.
Um gato? O grande sábio era um gato? Na sua terra os animais não falavam! Como poderiam eles ser sábios ali?
- Não sou desta terra, menino Nilo – respondeu O'Malley como se ouvisse pensamentos. - Fiz a passagem, assim como você. Mas resolvi não retornar para lá, pelo menos não tão cedo... E fui me instalando aqui. A mudança daquela terra para esta, onde a magia é possível e onde cada ser entende que tudo faz parte de um delicado equilíbrio, fez com que eu também ganhasse propriedades mágicas e começasse a falar. Ou simplesmente me fazer ser entendido...
O gato O'Malley deitou-se pesadamente sobre o chão, e Nilo pôde ver nitidamente seu semblante. Seus olhos eram amarelos como duas grandes luas cheias nascendo no horizonte; sua pelagem branca e preta era felpuda, cheia e pomposa. Era um gato grande, muito maior que os gatos de sua terra, com enormes bigodes e orelhas apontadas para o céu. Naquele momento, Nilo entendeu que havia pisado em sua cauda.
Mas só consegui tal mudança, pois trouxe comigo minha luz interior. Sua chama parece apagada. O que lhe aflige, menino Nilo?
- Não era pra eu estar aqui... Ou pelo menos não devo permanecer aqui como o senhor. Tânia, a rainha das fadas, me contou que sua filha, a princesa Sheila, desapareceu porque eu vim para esse mundo, e ela teve que ir para o meu mundo por conta do equilíbrio.
- Sim, menino Nilo, é assim que as coisas funcionam. Mas... A sua passagem não é definitiva. As pessoas podem ir e vir desta terra, sem necessariamente permanecer nela. Somente as pessoas que deixam aquele mundo permanecem aqui. Não é o seu caso... Você ainda tem muito o que fazer lá.
- Tem toda razão, senhor O'Malley. Assim como a rainha das fadas, minha mãe, também uma rainha, sofre por meu desaparecimento. Por isso tenho que voltar, e retomar novamente o equilíbrio. Assim, reinará a paz...
O'Malley lambeu a pata dianteira e com ela alisou os bigodes, pensando sobre o que Nilo havia dito. Depois falou, solenemente:
- A paz não é um estado eterno, menino Nilo. Ela é um equilíbrio dinâmico, no qual as necessidades que surgem são supridas conforme vão aparecendo. Não há como estagnar a paz, querendo mantê-la como um momento estático. Para que haja a paz, é preciso que as pessoas sejam livres para ir e vir, enfrentar mudanças e, assim, encontrar o próprio equilíbrio.
Nilo calou-se diante das palavras daquele gato, muito mais sábio do que qualquer ser humano que já havia conhecido. Entendeu que seu trânsito por aquela terra seria constante e, enquanto os dois universos continuassem existindo, sempre haveria seres e energias transitando entre eles. Por isso existe o inverno e existe o verão, e por isso as estações se sucedem umas às outras. Para que assim possa haver a vida, em seu equilíbrio dinâmico, como bem havia dito O'Malley.
- Como faço para fazer a passagem de volta, sábio O'Malley?
- Existe um ponto onde os mundos se cruzam. Mas apenas os felinos mágicos, como eu, conseguem levar e trazer os seres por ele. - o gato aproximou-se de Nilo. - Mas isso agora é um segredo nosso.
Nilo sorriu. E esperou que O'Malley continuasse.
- Seus pés não podem atravessar esse ponto de cruzamento, menino Nilo, apenas seu espírito. Suba em meu lombo e agarre-se ao meu pelo, e juntos faremos com que o equilíbrio retorne às duas terras, até que seja preciso buscá-lo novamente.
O príncipe Nilo fez exatamente conforme falou o gato O'Malley. Logo, estavam em frente a uma grande árvore, a maior que Nilo já havia visto, com enorme raízes e galhos. Em seu tronco havia um profundo oco, por onde não mais era possível ver luz nem ouvir sons.
Agora deve retornar sozinho. - disse O'Malley. - Mas cada vez que quiser vir aqui, eu o estarei esperando neste mesmo ponto, onde o tempo não é tempo...
- Grato, sábio O'Malley. Estou ansioso para vê-lo novamente. Como faço...
O'Malley não o deixou terminar.
- Aqui só encontrará respostas, menino Nilo. Apenas basta que adormeça tranquilo em sua cama para que faça a passagem. E eu o estarei esperando, sempre.
O príncipe Nilo sorriu, despediu-se do novo amigo e entrou no oco da árvore. Tão logo o fez, estava em seu quarto, em sua cama e o dia havia amanhecido. Olhou pela janela, e pode ver as lindas asas de Sheila se distanciando, voltando para casa...
Levantou sorridente e correu ao quarto de sua mãe para lhe dar um grande abraço.
- Mamãe, estou de volta!'
- Mamãe, estou de volta!
Nilo correu para a cama de sua mãe para abraçá-la.
- Que bom, querido! Acredito que teve bons sonhos...
- Os melhores. - respondeu Nilo, com um grande sorriso.
A partir daquela noite, Nilo começou a recusar o colo da mamãe para dormir. Ele se deitava em sua cama, tranquilo, e esperava que sua mamãe começasse:
- Era uma vez...
Logo, podia ver os grandes bigodes de O'Malley ao sair do oco. E aquilo sucedeu por muitas e muitas outras noites... Até quando foi preciso buscar novamente o equilíbrio.