Aqui
começa a história que vou lhes contar. Uma história que poderia acontecer ali
bem próximo, ou em uma parte longínqua do Universo. Do tipo que poderia se
repetir por milhões de vezes multiplicadas pelo número de estrelas, moldada
como o ir e vir incessante das ondas do mar que transformam, pela insistência,
pedras em areia.
Um
alerta, porém. Prestem bastante atenção ao que aqui for contado, pois este é
tipo de história que só se conta uma vez, ainda que se reverbere pela
eternidade no pensamento de quem a ouvir. A condição de sua existência é que só
poderá ser contada e ouvida uma vez por cada pessoa. E assim será. Portanto, atentem:
Não devaneiem e não fujam aos detalhes.
Assim
começa e termina esta história, pela incapacidade dos personagens, cujo gênio
habita tais palavras proferidas, de abrir mão daquilo que julgavam ser mais
caro em si mesmos. E tudo aquilo que lhes era mais caro em si mesmos, e na
junção dos dois acabou-se criando algo maior do que poderiam imaginar.
Arati
nasceu ao amanhecer. Bela, olhos atentos, natureza efusiva e contagiante desde
tenra idade. Nascida com a luz, sendo a luz seu reinado durante a vida toda. Oriunda
de uma família de artistas igualmente interessante, diurna, admiradores de sua
terra, de sua origem, da natureza e da prosperidade. Filha da terra e do fogo,
elementos que possuem forma própria e árduo processo de adaptação, mais
preferem moldar o exterior para que ele se molde a si. Criada para ser sensível,
amar a todos, enxergar a bondade em cada ser vivo... Mas não para revelar os
mistérios do lado sombrio do mundo, ou do lado sombrio de si mesma. Não sabia o
que era ser independente ou atentar sobre em quem confiar. Era menina enquanto
menina, e menina enquanto mulher. Seu corpo mudava como a primavera e o verão, mas
não aprendera a lidar com o outono e o inverno. Preocupou-se mais em cuidar dos
desejos do seu coração do que aprender a lidar com a prática em questão. Em
seus olhos o dia do céu azul e claro amanheceu, e assim ela cresceu...
Iúna
era seu nome. Nascido do outro lado do mundo, em uma terra distante daquela
onde havia luz. E foi no mais escuro da noite que sua alma adentrou sua carne e
animou o corpo não mais inerte. Filho da água e do ar, que se moldam ao bel prazer
do espaço e tempo, ou simplesmente escapam aos limites. Seu nascimento não foi
muito festejado; não pelo fato de não ser ele desejado, mas por sua família não
ser dada a grandes demonstrações, seja de afeto, de desafeto, de afetação.
Falavam pouco, eram guerreiros silenciosos e calculistas. Como o gato que
calcula o pulo instintivamente, dificilmente erravam o alvo. Não tinham muitos
amigos, mas sua presença era bem-vinda em quase todas as outras tribos, vizinhas
ou distantes. As estações, para Iúna, eram inverno, outono, primavera e verão,
em ordem decrescente de importância. Sua vida era reticente, um grande ir e vir
de emoções. Seu reinado era noturno, ainda que nada soturno. Oportuno era viver
entre sonho e realidade, pois para ele entre eles não havia barreiras. Sua escolha
era o impulso. E no compasso do seu pulso ele cresceu.
Foi
sob a ausência de luz que se conheceram. Sob o torpor do sonho, sob o negrume
que embaralha os sentidos, que dá vazão à própria imaginação, camufla os
defeitos e os transforma em efeitos.
Iúna
viu Arati como o raio destacado em meio ao total breu, e Arati viu Iúna como o
eclipse subjugando a luz. Era uma festa dada pela família de Arati, em virtude
do casamento de um dos membros que retornara vitorioso da batalha sobre o
próprio orgulho. Um não conseguia tirar os olhos do outro. Nada mais em volta
importava, brilhava ou obscurecia. Somente raio e eclipse, um em direção ao
outro. Nascia a história de amor de Iúna e Arati.
Foram
meses encontrando-se nos horários em que ambos estivessem plenos: o amanhecer e
o anoitecer. Ao amanhecer era Arati que chegava antes que Iúna se fosse, e ao
anoitecer era Iúna que vinha antes que Arati partisse. Trazidos e levados pela
vontade de estar juntos, num só corpo. E assim foi gerado o filho do dia e da
noite.
As
famílias receberam a notícia como um grande acontecimento. Nunca a luz e a
escuridão haviam se unido para gerar algo tão importante. Seria a concórdia,
enfim, e a união feliz de terra, ar, fogo e água. A perfeita alquimia da
criação. Iúna, Arati e o pequeno bebê, ainda no ventre da mãe, passaram a ficar
fisicamente juntos por dias e noites completos.
Logo
as diferenças de Arati e Iúna começaram a abater-se sobre a vontade de estar
num só corpo. Os meses e estações se passavam, e Arati passou a se irritar com
a sobriedade e inconstância de Iúna; as flores nasciam, as folhas caíam, e Iúna
passou a se irritar com os arroubos passionais e a dependência de Arati. Afinal
ela era a luz, ele a escuridão; ou tudo se transformava em luz, ou tudo virava
escuridão... Era a única lógica que conseguiam enxergar. Mal sabiam os dois que
dentro do ventre de Arati crescia justamente a lógica contrária àquele
raciocínio egoísta.
O
exercício de crescimento, ao passo que o bebê crescia, de Iúna e Arati não foi
fácil; Arati chorava e desejava a luz, Iúna fugia e almejava a escuridão. Em
pouco tempo, após o nascimento do bebê, a ruptura foi inevitável. Cada um
apenas pensou em manter aquilo que julgavam ser mais caro em si mesmos,
ignorando que a união entre os dois era a resposta que procuravam. Arati voltou
para o seio de sua família, que com a língua ferina passou a desejar mal a
Iúna, “o ignóbil filho da noite”. Iúna retornou para a família, que com o
orgulho ferido passou a querer longe “a incompreensível filha do dia”. Todos
sem entender o real sentido dos acontecimentos.
Baiurá,
filho de Iúna e Arati, cresceu por três ciclos diurnos ou trinta e nove ciclos
noturnos, conforme as contas das famílias. “Três primaveras”, contava Arati. “Três
invernos”, contava Iúna. Era forte, belo, inteligente e intuitivo. Sua visão de
criança parecia ir além do visível, do imóvel, do contável. Tudo lhe era
palpável ao coração e à imaginação. Arati e Iúna encontravam-se para ficar com
o menino, mas os encontros eram ao pleno dia, ou à ávida noite. Baiurá podia
transitar por luz e escuridão com a mesma destreza e esperteza. Ainda assim, a
aproximação era difícil, mas unida pelo desejo de estar num só corpo, o corpo
de Baiurá.
Em
um desses encontros, por não aguentar-se de paixão, Arati perguntou a Iúna,
longe de olhos alheios:
-
Se te pedisse para vir para minha terra para tentarmos ficar juntos de novo, tu
virias? Como da vez que me pediste para ir para tua terra para ficar contigo?
Não precisas me responder agora. Se achares que sim, vem. Estarei esperando ao
amanhecer e ao anoitecer... Vem quando quiseres.
E
assim, Arati esperava ao amanhecer, antes de Baiurá despertar, e ao anoitecer,
depois de Baiurá dormir. Os anos se passaram, Baiurá cresceu e tornou-se
homem... E Iúna não veio. Iúna não apareceu, nem ao amanhecer, nem ao
anoitecer. Pensou durante todos aqueles anos sobre o que faria, em cada
amanhecer e cada anoitecer seu coração tamborilava no peito, criando a música
do anseio e da ansiedade. Mas ele não conseguia decidir por deixar o orgulho
para trás. Ele não conseguia decidir sobre deixar o que era mais caro em si
mesmo... Sem saber que se tratava apenas em abrir mão do que não mais lhe
servia para unir suas forças a algo maior. Não conseguiu escolher... E o tempo
escolheu por ele. Iúna casou-se de novo, mas não teve mais filhos.
Arati
cansou de esperar, depois de muito, muito tempo. Casou-se de novo, com alguém
que foi pai para Baiurá. Foi feliz por um tempo. Mas nunca amou como amou Iúna.
Ambos agora conheciam o outro lado, ela a escuridão, ele a luz. Mas não
conseguiram iluminar as virtudes ou apagar os medos de dentro de seu coração.
Certo
dia chegou a hora de Arati juntar-se aos espíritos de seus ancestrais. Criara
seu filho, fora feliz, tornara-se mulher, independente, consciente do bem e do
mal. Não devia nada a ninguém.
No
leito de morte, Arati pediu a seu filho:
-
Chama teu pai.
Baiurá
foi até a sala e chamou o marido de Arati. Ela então lhe confidenciou ao
ouvido:
-
Não, Baiurá... Chama TEU pai.
Em
poucos minutos, Iúna chegou. Não foi preciso chamá-lo, ele sentira a energia de
Arati se esvaindo. Chegou próximo ao leito com todo o respeito do mundo, e
esperou que ela lhe falasse, com voz rouca.
-
Iúna... Sei que fomos felizes enquanto estivemos juntos. E sei que só não
fomos mais felizes porque não soubemos abrir mão de parte de nós mesmos, do
orgulho que não nos cabia. Tu foste feliz do teu jeito, eu fui feliz do meu.
Mas não fomos felizes, nós dois. Baiurá foi a concretização de uma união que
poderia ter trazido eterna felicidade, mas foi nele que nosso amor se realizou.
Antes de partir, quero pedir-lhe perdão. Perdão por não ter sabido amar além do
amor, e perdoar-te por tu não teres sabido amar além do amor. E lamento por não
termos aprendido juntos. Mas aprendemos pelo amor que temos por Baiurá. E essa
é foi a remissão de nossas fraquezas. Baiurá foi o amar além do amor.
E,
dito isso, respirou pela última vez. Iúna chorou ao lado do corpo inerte de
Arati por dias e noites, sem se dar conta da passagem do tempo. As famílias se reuniram
para retirar o corpo de Arati de seu bálsamo, e acharam Iúna deitado ao lado
dela, também sem o sopro de vida.
Foram
enterrados sob a árvore do meio do mundo, que unia as duas partes das terras
onde estavam os povos, sendo instituído o amanhecer como o horário do fogo e o
anoitecer como o horário da água. Baiurá recebeu dos deuses o direito de
escolher um monumento celeste para seus pais, dando a Arati, o Sol, o reinado
do dia, e Iúna, a Lua, o reinado da noite. A eles era permitido encontrar-se em
determinados momentos, quando Iúna, a Lua, abria mão de parte de seu brilho. É
por isso que, na Lua Nova, vê-se esse astro a transitar perto de Arati, o Sol,
porém ainda sem se tocar totalmente... Pois a isso se atribuiu Baiurá.
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