E como falar em tirar vidas humanas, se fazemos isso constantemente com animais? Se ignoramos a existência de uma pessoa maltrapilha dormindo embaixo de um viaduto? Se admitimos que políticos ganhem décimos-terceiros, quartos e quintos (e ainda ganhem o “excedente de campanha”) enquanto professores não ganham sequer um salário para trabalhar às vezes mais que quarenta horas por semana? Os mesmos professores que lutam para dar uma vida melhor para alunos que, após menos de uma hora do início de um dia de aula, morrem brutalmente pelas mãos de um jovem que (ironia do destino?) também fora seu aluno...
Não se trata de inverter os papéis de vítimas e algozes. E é fato que uma pessoa que faça algo como o atirador do Rio (que, assim esperamos, não seja o primeiro de uma espécie, mas o primeiro e o último) tem uma estrutura de personalidade que propicie a realização do ato de violência. Mas já passamos da época de achar que um ato de proporções catastróficas como este seja de responsabilidade apenas de seu autor. Ou será que não?
Hoje ouvi perplexa o comentário de um psiquiatra, num dos mais assistidos jornais televisivos da manhã, que “pessoas desse tipo já nascem assim, e é somente uma questão de tempo até que manifestem a ruptura da personalidade”. Ele falava, no caso, da psicopatia (que, em minha visão de psicóloga, não se encaixaria ao caso, mas sim um surto psicótico envolvendo, inclusive, alucinações). Será que se trata somente de algo do indivíduo? Ficaremos eternamente procurando “bodes expiatórios” para nossos problemas sociais?
Acompanhei atentamente a parte da reportagem que descreveu a vida do atirador. Tímido, virgem, fanático, desorganizado, distante, com ideias mirabolantes sobre ataques terroristas que, apesar das tentativas da sua falecida mãe adotiva em levá-lo a psicólogos (sim, ele passou por psicólogos, segundo consta), terminou em uma vida de abandono, aquela “pessoa invisível” que não acrescenta, mas também não atrapalha. E ele era assim visto pelos vizinhos, que tentavam sim tratar-lhe com carinho, aquele carinho que dedicamos a um (mero) desconhecido, e não a uma pessoa que existe, e tem importância. Ele se fazia não ter importância. Era mais ou menos como aquela aranha silenciosa que perambula pelas paredes e não nos causa problemas, até que ela resolva invadir nosso lençóis à noite e nos desferir mordidas mortais. E foi exatamente isso que aconteceu: o “inseto” mostrou que veio ao mundo por algum motivo. Que ele também tem suas armas, e que apenas resolveu usá-las porque foi, no fundo, um incompreendido.
É possível que eu esteja, sim, romanciando a história. Foi realmente uma tragédia sem precedentes. Mas de que parte da tragédia estamos falando? De alguns minutos de terror no qual faleceu o futuro e morreram os sonhos de 12 crianças (ou mais, ainda não se sabe), ou nos anos e anos de sofrimento pelo qual passou um “inseto”, assim tratado pela sociedade? Sim, ele teve as pessoas que quiseram e tentaram ajudá-lo. Sim, ele tinha um desvio sério de personalidade. Mas até que ponto fomos cegos para enxergar as reais intenções daquele rapaz? Até que ponto fomos surdos a seus gritos de socorro? E até quando vamos ignorar os gritos de socorro daquela criança que é abusada e violentada, daquele idoso espancado em casa, daquela mulher estuprada, do pai desempregado, do índio marginalizado, do animal maltratado, das árvores queimadas, de todo, todo um planeta sem pai e nem mãe? Até quando vamos desrespeitar e sucatear o núcleo familiar e aguentar que a mídia e o governo coloquem a culpa toda em cima dele? Até quando vamos ter rapazes suicidas entrando em escolas e atirando a esmo e mirando, principalmente, meninas?
Essas são todas perguntas, até agora, sem resposta... Cabe a nós sabermos se vamos continuar surdos-mudos de uma sociedade sem direção, ou se vamos arregaçar as mangas para criar nossas próprias respostas.
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