Algo hoje me motivou tanto a escrever, depois de meses sem nenhum texto saltando no pensamento, que mesmo a despeito do cansaço resolvi parar tudo e escrever sobre o acontecimento. Na verdade, foi esse acontecimento (ou uma sucessão de acontecimentos, talvez) que me levou a ter a mente borbulhante de ideias e palavras, palavras e mais palavras.
Muitos que me conhecem sabem do meu desejo de viver como artista. Posso dizer que me “descobri” artista aos 11 anos, participando de uma peça numa colônia de férias. Dali em diante, fui devorando livros, recortes de jornais e revistas, reportagens televisivas, tudo o que me viesse à mão que falasse sobre o assunto. E, quando me vi realmente num palco pela primeira vez, parecia que eu tinha estado lá a vida inteira. Ou estava lá o sentido e estava lá o gozo dos sentidos, das sensações e dos pensamentos. Eu me vi porta-voz de algo que não vinha exatamente de mim mesma, era algo que saltava para além de mim, surgindo de uma concepção maior.
Carl G. Jung (para quem não conhece, Jung foi discípulo de Freud, mas ampliou o estudo da psicanálise para além das fronteiras da cultura) já dizia que o artista é o responsável por trazer à visão o inconsciente coletivo, algo que está dentro de cada pessoa e que não pode ser facilmente visto, o sujo e o belo, porque o verdadeiro artista transita entre os extremos e as mesclas de cores sem preconceitos, ou sem ter preferência por alguma delas. O artista fala de assuntos que acompanham gerações, é ele que acende a primeira fagulha no meio da escuridão. E, já dizia Jung, o artista não escolhe ser artista, ele nasce artista, no sentido de trazer essa centelha da paixão dentro de si. É isso que seria dizer do “artista nato”, ao meu ver, e não alguém que parece ter um talento para algo, seja Arte ou não.
Deixem-me falar sobre a questão do talento, pois foi isso que me motivou a escrever hoje. Muitas vezes eu me questiono a respeito do meu talento. Principalmente na Arte, mas também em diversas coisas na vida: talento para ser mãe, para casar... Mas por enquanto quero só falar sobre o talento na Arte. Muito sabiamente um autor falou que o ator (e por que não dizer o artista em geral) é parte inspiração, parte transpiração. E eu acrescentaria mais um componente a isso: paixão. Sim, paixão. Aquilo que nos faz sentir o arrepio na altura do estômago, o rubor e o calor da face, as mãos suadas e geladas... paixão. É algo tão forte, que os gregos chegaram a classificar a paixão como doença (pathos, mesma palavra que dá origem a patologia), tamanho desequilíbrio que ela causava (e ainda causa) no corpo humano. Taquicardia, sudorese, pupilas dilatadas, tremores... Desequilíbrio. Mas um desequilíbrio bom, que nos tira do status quo, do mesmismo das nossas vidas, que nos libera da intoxicação do tédio e da rotina. Pura paixão. E é isso que move o artista, ou que pelo menos deve mover. Muito mais do que talento (inspiração), e trabalho (transpiração), o artista tem que trazer dentro de si a paixão. Aquilo que provoca tudo que eu falei anteriormente, faz alguém se mover para fora de si mesmo.
A paixão, e a Arte por consequência, não nascem do impulso sexual. Ter paixão não quer dizer libertinagem, festas frequentes até alta madrugada, álcool, drogas e etc. Isso é pura satisfação da parte animal, do ID. Nem sequer a paixão está localizada somente no pensamento, na vaidade e no EGO. Esses são só instrumentos para a Arte. Mas a Arte, ao meu ver, está localizada no ponto exatamente do meio, aquele ponto próximo ao umbigo, o ponto de equilíbrio, que une o animal ao humano, o terreno ao divino. Porque a Arte está para além disso, ela é esse ponto de equilíbrio e desequilíbrio ao mesmo tempo.
Algo sempre me move e me moveu em direção à Arte. Como uma vocação, um chamado da alma. E a cada não que eu ouvia – pais dizendo: “desista disso, você precisa se concentrar em ganhar dinheiro”, amigos dizendo: “você não tem mais idade pra começar uma carreira”, circunstâncias da vida, fracassos em testes, escolhas mal-feitas e consequências piores ainda – mais e mais eu tinha certeza do que eu queria. Já viram um bebê aprendendo a andar? É tanto tombo, tanto tombo, mas ele continua tentando, porque no fundo sente que suas pernas foram destinadas a isso e que ele tem todo potencial necessário para andar. É assim que me sinto com a Arte. Ainda que às vezes meu talento e minha transpiração sejam postos à prova, a paixão continua. Ela não sai daquele ponto de equilíbrio no meio do umbigo. Ela não para de me dar arrepios na espinha toda vez que entro num palco. Não para de me fazer querer mais e mais experiências.
Isso tudo que falei não vale só para a vida artística. Para ser um bom advogado, uma ótima professora, um médico exemplar, uma dona de casa fora de série, para qualquer ofício e sacro-ofício é preciso paixão. Se você não tiver mais aquela força que move e impulsiona você para aquela necessidade da corda bamba, da emoção e do equilíbrio-desequilíbrio, você se desviou do caminho da sua arte. Acima de tudo, ouça essa força que vem das suas entranhas e queima por dentro. Nós sabemos que o dia-a-dia consome essa chama até ela se apagar, mas no fundo essa centelha continua brilhando, basta saber e querer enxergar. Pegue essa centelha e a transforme em uma fogueira perpétua. E, mesmo que ventos soprem, que tentem abafá-la de alguma forma, você saberá que sempre poderá acendê-la de novo. Basta ter paixão. Eu tenho, e é por isso que essa enorme fogueira teima em arder aqui dentro...
Muito bom, Raquel! Pensamentos e sensações bem parecidos com os meus! Conforme conversamos, não exija tanto de vc, deixe sua vida fluir, sem exageros de cobrança, nem punições desmedidas. Sei que a ansiedade é grande, tbm passo por isso, mas quanto mais estivermos exasperados, menos as coisas acontecem...
ResponderExcluirTe admiro, minha querida!
Bj.