Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Lenda de Baiurá






Aqui começa a história que vou lhes contar. Uma história que poderia acontecer ali bem próximo, ou em uma parte longínqua do Universo. Do tipo que poderia se repetir por milhões de vezes multiplicadas pelo número de estrelas, moldada como o ir e vir incessante das ondas do mar que transformam, pela insistência, pedras em areia.
Um alerta, porém. Prestem bastante atenção ao que aqui for contado, pois este é tipo de história que só se conta uma vez, ainda que se reverbere pela eternidade no pensamento de quem a ouvir. A condição de sua existência é que só poderá ser contada e ouvida uma vez por cada pessoa. E assim será. Portanto, atentem: Não devaneiem e não fujam aos detalhes.

Assim começa e termina esta história, pela incapacidade dos personagens, cujo gênio habita tais palavras proferidas, de abrir mão daquilo que julgavam ser mais caro em si mesmos. E tudo aquilo que lhes era mais caro em si mesmos, e na junção dos dois acabou-se criando algo maior do que poderiam imaginar.

Arati nasceu ao amanhecer. Bela, olhos atentos, natureza efusiva e contagiante desde tenra idade. Nascida com a luz, sendo a luz seu reinado durante a vida toda. Oriunda de uma família de artistas igualmente interessante, diurna, admiradores de sua terra, de sua origem, da natureza e da prosperidade. Filha da terra e do fogo, elementos que possuem forma própria e árduo processo de adaptação, mais preferem moldar o exterior para que ele se molde a si. Criada para ser sensível, amar a todos, enxergar a bondade em cada ser vivo... Mas não para revelar os mistérios do lado sombrio do mundo, ou do lado sombrio de si mesma. Não sabia o que era ser independente ou atentar sobre em quem confiar. Era menina enquanto menina, e menina enquanto mulher. Seu corpo mudava como a primavera e o verão, mas não aprendera a lidar com o outono e o inverno. Preocupou-se mais em cuidar dos desejos do seu coração do que aprender a lidar com a prática em questão. Em seus olhos o dia do céu azul e claro amanheceu, e assim ela cresceu...

Iúna era seu nome. Nascido do outro lado do mundo, em uma terra distante daquela onde havia luz. E foi no mais escuro da noite que sua alma adentrou sua carne e animou o corpo não mais inerte. Filho da água e do ar, que se moldam ao bel prazer do espaço e tempo, ou simplesmente escapam aos limites. Seu nascimento não foi muito festejado; não pelo fato de não ser ele desejado, mas por sua família não ser dada a grandes demonstrações, seja de afeto, de desafeto, de afetação. Falavam pouco, eram guerreiros silenciosos e calculistas. Como o gato que calcula o pulo instintivamente, dificilmente erravam o alvo. Não tinham muitos amigos, mas sua presença era bem-vinda em quase todas as outras tribos, vizinhas ou distantes. As estações, para Iúna, eram inverno, outono, primavera e verão, em ordem decrescente de importância. Sua vida era reticente, um grande ir e vir de emoções. Seu reinado era noturno, ainda que nada soturno. Oportuno era viver entre sonho e realidade, pois para ele entre eles não havia barreiras. Sua escolha era o impulso. E no compasso do seu pulso ele cresceu.

Foi sob a ausência de luz que se conheceram. Sob o torpor do sonho, sob o negrume que embaralha os sentidos, que dá vazão à própria imaginação, camufla os defeitos e os transforma em efeitos.

Iúna viu Arati como o raio destacado em meio ao total breu, e Arati viu Iúna como o eclipse subjugando a luz. Era uma festa dada pela família de Arati, em virtude do casamento de um dos membros que retornara vitorioso da batalha sobre o próprio orgulho. Um não conseguia tirar os olhos do outro. Nada mais em volta importava, brilhava ou obscurecia. Somente raio e eclipse, um em direção ao outro. Nascia a história de amor de Iúna e Arati.

Foram meses encontrando-se nos horários em que ambos estivessem plenos: o amanhecer e o anoitecer. Ao amanhecer era Arati que chegava antes que Iúna se fosse, e ao anoitecer era Iúna que vinha antes que Arati partisse. Trazidos e levados pela vontade de estar juntos, num só corpo. E assim foi gerado o filho do dia e da noite.

As famílias receberam a notícia como um grande acontecimento. Nunca a luz e a escuridão haviam se unido para gerar algo tão importante. Seria a concórdia, enfim, e a união feliz de terra, ar, fogo e água. A perfeita alquimia da criação. Iúna, Arati e o pequeno bebê, ainda no ventre da mãe, passaram a ficar fisicamente juntos por dias e noites completos.
Logo as diferenças de Arati e Iúna começaram a abater-se sobre a vontade de estar num só corpo. Os meses e estações se passavam, e Arati passou a se irritar com a sobriedade e inconstância de Iúna; as flores nasciam, as folhas caíam, e Iúna passou a se irritar com os arroubos passionais e a dependência de Arati. Afinal ela era a luz, ele a escuridão; ou tudo se transformava em luz, ou tudo virava escuridão... Era a única lógica que conseguiam enxergar. Mal sabiam os dois que dentro do ventre de Arati crescia justamente a lógica contrária àquele raciocínio egoísta.
O exercício de crescimento, ao passo que o bebê crescia, de Iúna e Arati não foi fácil; Arati chorava e desejava a luz, Iúna fugia e almejava a escuridão. Em pouco tempo, após o nascimento do bebê, a ruptura foi inevitável. Cada um apenas pensou em manter aquilo que julgavam ser mais caro em si mesmos, ignorando que a união entre os dois era a resposta que procuravam. Arati voltou para o seio de sua família, que com a língua ferina passou a desejar mal a Iúna, “o ignóbil filho da noite”. Iúna retornou para a família, que com o orgulho ferido passou a querer longe “a incompreensível filha do dia”. Todos sem entender o real sentido dos acontecimentos.
Baiurá, filho de Iúna e Arati, cresceu por três ciclos diurnos ou trinta e nove ciclos noturnos, conforme as contas das famílias. “Três primaveras”, contava Arati. “Três invernos”, contava Iúna. Era forte, belo, inteligente e intuitivo. Sua visão de criança parecia ir além do visível, do imóvel, do contável. Tudo lhe era palpável ao coração e à imaginação. Arati e Iúna encontravam-se para ficar com o menino, mas os encontros eram ao pleno dia, ou à ávida noite. Baiurá podia transitar por luz e escuridão com a mesma destreza e esperteza. Ainda assim, a aproximação era difícil, mas unida pelo desejo de estar num só corpo, o corpo de Baiurá.
Em um desses encontros, por não aguentar-se de paixão, Arati perguntou a Iúna, longe de olhos alheios:
- Se te pedisse para vir para minha terra para tentarmos ficar juntos de novo, tu virias? Como da vez que me pediste para ir para tua terra para ficar contigo? Não precisas me responder agora. Se achares que sim, vem. Estarei esperando ao amanhecer e ao anoitecer... Vem quando quiseres.
E assim, Arati esperava ao amanhecer, antes de Baiurá despertar, e ao anoitecer, depois de Baiurá dormir. Os anos se passaram, Baiurá cresceu e tornou-se homem... E Iúna não veio. Iúna não apareceu, nem ao amanhecer, nem ao anoitecer. Pensou durante todos aqueles anos sobre o que faria, em cada amanhecer e cada anoitecer seu coração tamborilava no peito, criando a música do anseio e da ansiedade. Mas ele não conseguia decidir por deixar o orgulho para trás. Ele não conseguia decidir sobre deixar o que era mais caro em si mesmo... Sem saber que se tratava apenas em abrir mão do que não mais lhe servia para unir suas forças a algo maior. Não conseguiu escolher... E o tempo escolheu por ele. Iúna casou-se de novo, mas não teve mais filhos.
Arati cansou de esperar, depois de muito, muito tempo. Casou-se de novo, com alguém que foi pai para Baiurá. Foi feliz por um tempo. Mas nunca amou como amou Iúna. Ambos agora conheciam o outro lado, ela a escuridão, ele a luz. Mas não conseguiram iluminar as virtudes ou apagar os medos de dentro de seu coração.
Certo dia chegou a hora de Arati juntar-se aos espíritos de seus ancestrais. Criara seu filho, fora feliz, tornara-se mulher, independente, consciente do bem e do mal. Não devia nada a ninguém.
No leito de morte, Arati pediu a seu filho:
- Chama teu pai.
Baiurá foi até a sala e chamou o marido de Arati. Ela então lhe confidenciou ao ouvido:
- Não, Baiurá... Chama TEU pai.
Em poucos minutos, Iúna chegou. Não foi preciso chamá-lo, ele sentira a energia de Arati se esvaindo. Chegou próximo ao leito com todo o respeito do mundo, e esperou que ela lhe falasse, com voz rouca.
- Iúna... Sei que fomos felizes enquanto estivemos juntos. E sei que só não fomos mais felizes porque não soubemos abrir mão de parte de nós mesmos, do orgulho que não nos cabia. Tu foste feliz do teu jeito, eu fui feliz do meu. Mas não fomos felizes, nós dois. Baiurá foi a concretização de uma união que poderia ter trazido eterna felicidade, mas foi nele que nosso amor se realizou. Antes de partir, quero pedir-lhe perdão. Perdão por não ter sabido amar além do amor, e perdoar-te por tu não teres sabido amar além do amor. E lamento por não termos aprendido juntos. Mas aprendemos pelo amor que temos por Baiurá. E essa é foi a remissão de nossas fraquezas. Baiurá foi o amar além do amor.
E, dito isso, respirou pela última vez. Iúna chorou ao lado do corpo inerte de Arati por dias e noites, sem se dar conta da passagem do tempo. As famílias se reuniram para retirar o corpo de Arati de seu bálsamo, e acharam Iúna deitado ao lado dela, também sem o sopro de vida.
Foram enterrados sob a árvore do meio do mundo, que unia as duas partes das terras onde estavam os povos, sendo instituído o amanhecer como o horário do fogo e o anoitecer como o horário da água. Baiurá recebeu dos deuses o direito de escolher um monumento celeste para seus pais, dando a Arati, o Sol, o reinado do dia, e Iúna, a Lua, o reinado da noite. A eles era permitido encontrar-se em determinados momentos, quando Iúna, a Lua, abria mão de parte de seu brilho. É por isso que, na Lua Nova, vê-se esse astro a transitar perto de Arati, o Sol, porém ainda sem se tocar totalmente... Pois a isso se atribuiu Baiurá.

domingo, 22 de julho de 2012

Cidades Inacessíveis


Cidade, cidadania, cidadão, todas são palavras com a mesma raiz etimológica, diz Aurélio. Mas concordemos que nem sempre felicidade está na raiz de se viver em aglomerados urbanos, mesmo que a sonoridade na rima pouco criativa ainda lhe caia bem.
Os seres humanos, desde sua evolução para seres altamente sociais, buscam o conjunto e a conjunção de forças e habilidades para segurança, proteção, aconchego. As cidades – e, em consequência, as grandes cidades – criaram-se dessa necessidade de união, sendo o Estado criado para garantir a qualidade mínima de vida de cada cidadão sob seu domínio.
Tudo muito lindo na teoria dos livros de História e para Aurélio, talvez. Mas, na prática da vida de cada pessoa que (sobre)vive nas cidades, não é bem assim. Cidades feitas para proteger, servir e aconchegar hoje oprimem. O que antes era pensado para permitir e facilitar o acesso de pessoas agora não passa de um aglomerado desenfreado de concreto vazio, de obras de arte arquitetônicas maravilhosas... Mas para quem mesmo?
Sou metade paulistana, metade brasiliense. Vivi numa São Paulo de paralelepípedos, pipas no céu, joelhos ralados e um bom punhado de carros. Já não havia muito verde nem planejamento urbano, mas era possível ir até um parque de bicicleta. Hoje em dia cada paulistano anda em seu carro na mesma velocidade do que nós em bicicletas: 14km/h - duas horas e meia todos os dias dentro de um carro, em média. E nem adianta reclamar do motorista da frente, o problema está na quantidade de veículos nas ruas (e cada um talvez com apenas o motorista dentro dele). Pouco ou nada é feito para mudar a situação. Talvez um túnel ou viaduto aqui e ali, onde ainda tiver terra ou céu para “enfeitar”. Paliativos eleitoreiros, nada mais. Soluções não vêm dos céus ou da terra, tão pouco das urnas.
Brasília, onde atualmente vivo e crio meu filho, segue rumo ao mesmo destino, com exceção de que, se tivermos um dia o mesmo tanto de gente do que São Paulo, estaremos vivendo “cada um no seu quadrado”, literalmente. Temos apenas duas grandes saídas da cidade, Norte e Sul. Pensando que todos (cada um no seu volante) vão e voltam no mesmo horário, e que o Plano Piloto absorve a maior massa de trabalhadores, em poucos anos teremos de morar dentro de nossos veículos.
Penso que Brasília, lindamente idealizada e construída por algumas personalidades “faraônicas” - megalomania é mera coincidência - teve em seu processo de criação um pensamento humanista e utópico como a nossa Constituição de 88. Maravilhosamente altruístas, belas, buscando o bem como princípio, a igualdade como fundamento, mas enfaixadas e imóveis feito uma múmia, igualmente inacessíveis. Lindas na teoria, mas carregando em si o medo da mudança pelo processo dispendioso para alterá-las, tanto Constituição quanto cidade. Brasília é tombada e leva tombos em sua função de servir e amparar pessoas. Nada pode mudar, e para mudar é preciso muito tempo, muito pensar, sendo montada feito um “Frankestein” arquitetônico. Semelhante à nossa amiga Constituição, uma verdadeira colcha de retalhos...
O que fazer para mudar a situação? Talvez olhar para a realidade ao invés de ficar olhando para um ideal, construir ouvidos nas paredes de concreto para escutar o que sua população deseja, sente, pensa. Quem sabe assim teremos cidades, efetivamente, com a mesma raiz de cidadão e cidadania, e onde possamos fincar as raízes de nossa feli(z)cidade. Aurélio que o diga...