Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A Cartilha

 O sol entrou imponente através das cortinas entreabertas. Havia dormido sobre o tapete da sala, ao lado da caixa recheada de lembranças. Não tinha certeza de como dormira, nem exatamente do que fizera na noite anterior. Lembrava-se da odisseia em busca de vela e fósforos, do achado da lanterna e da descoberta do passado atrás da porta... mas lembrava-se também que a aventura etílica de horas depois fizera seu corpo render-se facilmente a conclusões precipitadas - e à precipitação sobre o tapete da sala...

A luz ardeu em seus olhos ainda mais forte quando o vento brincou sarcasticamente com a leveza das cortinas. A orgulhosa manhã mostrava todo seu poder, enquanto lá fora o mundo se recuperava lentamente da embriaguez causada pela tempestade.

Seu corpo, ainda um pouco dormente, estava abraçado à lanterna usada para iluminar o papel em que escrevera aquela última carta...

“A carta!...”

Levantou-se desajeitadamente e caminhou até a janela. Os olhos arderam antes que pudesse olhar para fora... e perceber o óbvio. Todos os seus últimos sentimentos motivados por sua trajetória amorosa até aquele momento haviam voado livres pela rua, talvez pela cidade. E, pela última vez, referiu-se ao personagem mitológico que povoara seu inconsciente por todos aqueles anos. A quem endereçara confidências, desejos, sonhos... todos endereçados, na verdade, aos seus próprios pensamentos.

Inspirou e expirou o ar lentamente com os olhos fechados. Deixou que sua mente refizesse os passos até ali, como um filme numa tela de cinema. Em seguida, olhou a lanterna em suas mãos... e resolveu que não precisaria mais daquele foco artificial sobre os objetos e emoções perdidas no tempo.

Decidiu esquecer tudo aquilo por um momento, entregando-se como um robô à rotina matinal. O olhar ainda voltado para dentro, como se alguma coisa tivesse lhe escapado. Alguma peça de todo aquele quebra-cabeças estava fora de seu lugar. Talvez a autopiedade da noite anterior amolecera seu julgamento ao ponto de não lembrar-se que era responsável por todos os passos tortos que dera até ali. Passos tortos motivados pela embriaguez com os próprios sonhos, pela atmosfera onírica inebriante. Prendera-se a seu papel de vítima e esquecera que a responsabilidade por tudo que vivera estava esquecida e relegada a uma caixa atrás da porta.

Apoiando-se sobre a pia do banheiro, olhou-se demoradamente no espelho. Era um reflexo maduro, que poderia dar-se ao luxo de embriagar-se de sonhos, de suas próprias lágrimas e de vários copos de algo da adega. Uma imagem adulta, que poderia caminhar resoluta sobre a própria história sem tropeçar. E, ainda assim, via-se tão inocente quanto uma criança que vê seu reflexo pela primeira vez.

Ali mesmo, diante dos olhos que deveriam enxergar-se como eram, esqueceu-se do cansaço. Esqueceu-se das mágoas, das desilusões, de todo o apelo do ego - ao qual sucumbimos quando estamos bêbados de nossos próprios sentimentos, naquele estado em que nada mais importa do que sentirmos para além de nós mesmos. Não queria mais embriagar-se de si... queria viver para além do ego.

O som da campainha quebrou o encanto de seu devaneio. Foi até a porta como quem já esperava visitas.

Por um momento, pensou ver seu reflexo, mais uma vez...

- Sim?

- Bom dia. Peço desculpas por importunar esta hora da manhã...

- Não importuna... – silêncio. – Ahm... Você...

- Moro no apartamento ao lado. Acabei de me mudar.

Olhou aquela figura com certa descrença. Não que sua presença àquela hora da manhã não fosse bem-vinda... mas... que presença?

- Achei por bem avisar deste pacote à sua porta.

Outra caixa...

- Agradeço.

Não estava esperando pacote nenhum. Mas nele estava escrito seu nome. Sem remetente. Olhou para o corredor do andar, e novamente para a figura desconhecida em frente à sua porta. Algo parecia familiar...

Rasgou o papel como uma criança que abre seu presente. Abriu-a com curiosidade. Retirou de dentro dela um objeto e um papel com alguns escritos.

Franziu as sobrancelhas, achando tratar-se de uma piada. Mas os escritos eram muito sérios.

*

Tu não precisas mais de mim... pois sabes do que precisa. Entrego-te meu ofício para fazeres dele o que desejares. Mas lembra-te: ele só pode ser usado uma única vez. Ainda que tenhas várias chances, o caminho é um só... e tu já sabes qual é. Entrego-te a cartilha como me entregaste a carta. Sabes o que deves fazer. Abra-te como abriu este presente... como uma criança.

Com amor,

Cupido

*

Olhou para dentro da caixa descrente. Ao colocar a mão para retirar o objeto, espetou o dedo em algo pontudo. Em um movimento automático, levou a mão à boca para sugar o sangue. Mas a dor foi muito maior do que apenas um corte no dedo. A dor foi como se tivessem lhe perfurado o coração.

- Você está bem?...

Quando deu por si, estava recebendo socorro de alguém que ainda não conhecia... Alguém a quem enxergava com os olhos de criança.

- Senti uma dor estranha no peito... mas acho que não é nada.

- Pode ser grave. É melhor chamar alguém...

Colocou a mão no peito para amenizar a dor.

- Não... não há ninguém para chamar.

- Então ficarei com você por um tempo.

- Não... não precisa...

- Não fico porque preciso... fico porque quero.

E sorriu seu sorriso mais lindo. O sorriso descompromissado de quem já soube se abrir para o mundo.

Abriram-se pelo resto do dia.

Abriram-se por outros dias.

Abriram-se por longos anos.

Abriram-se para ver sonhos alçarem voos pela janela...

E finalmente decidiram abrir-se para escrever cartas de uma nova história...

Para escrever a cartilha como bem entendessem...


Como se pela primeira vez.




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