A luz ardeu em seus olhos ainda mais forte
quando o vento brincou sarcasticamente com a leveza das cortinas. A orgulhosa
manhã mostrava todo seu poder, enquanto lá fora o mundo se recuperava
lentamente da embriaguez causada pela tempestade.
Seu corpo, ainda um pouco dormente, estava
abraçado à lanterna usada para iluminar o papel em que escrevera aquela última
carta...
“A carta!...”
Levantou-se desajeitadamente e caminhou até a
janela. Os olhos arderam antes que pudesse olhar para fora... e perceber o
óbvio. Todos os seus últimos sentimentos motivados por sua trajetória amorosa
até aquele momento haviam voado livres pela rua, talvez pela cidade. E, pela
última vez, referiu-se ao personagem mitológico que povoara seu inconsciente
por todos aqueles anos. A quem endereçara confidências, desejos, sonhos...
todos endereçados, na verdade, aos seus próprios pensamentos.
Inspirou e expirou o ar lentamente com os olhos
fechados. Deixou que sua mente refizesse os passos até ali, como um filme numa
tela de cinema. Em seguida, olhou a lanterna em suas mãos... e resolveu que não
precisaria mais daquele foco artificial sobre os objetos e emoções perdidas no
tempo.
Decidiu esquecer tudo aquilo por um momento,
entregando-se como um robô à rotina matinal. O olhar ainda voltado para dentro,
como se alguma coisa tivesse lhe escapado. Alguma peça de todo aquele
quebra-cabeças estava fora de seu lugar. Talvez a autopiedade da noite anterior
amolecera seu julgamento ao ponto de não lembrar-se que era responsável por
todos os passos tortos que dera até ali. Passos tortos motivados pela
embriaguez com os próprios sonhos, pela atmosfera onírica inebriante. Prendera-se
a seu papel de vítima e esquecera que a responsabilidade por tudo que vivera
estava esquecida e relegada a uma caixa atrás da porta.
Apoiando-se sobre a pia do banheiro, olhou-se
demoradamente no espelho. Era um reflexo maduro, que poderia dar-se ao luxo de
embriagar-se de sonhos, de suas próprias lágrimas e de vários copos de algo da adega.
Uma imagem adulta, que poderia caminhar resoluta sobre a própria história sem
tropeçar. E, ainda assim, via-se tão inocente quanto uma criança que vê seu
reflexo pela primeira vez.
Ali mesmo, diante dos olhos que deveriam
enxergar-se como eram, esqueceu-se do cansaço. Esqueceu-se das mágoas, das
desilusões, de todo o apelo do ego - ao qual sucumbimos quando estamos bêbados
de nossos próprios sentimentos, naquele estado em que nada mais importa do que
sentirmos para além de nós mesmos. Não queria mais embriagar-se de si... queria
viver para além do ego.
O som da campainha quebrou o encanto de seu
devaneio. Foi até a porta como quem já esperava visitas.
Por um momento, pensou ver seu reflexo, mais uma
vez...
- Sim?
- Bom dia. Peço desculpas por importunar esta
hora da manhã...
- Não importuna... – silêncio. – Ahm... Você...
- Moro no apartamento ao lado. Acabei de me
mudar.
Olhou aquela figura com certa descrença. Não que
sua presença àquela hora da manhã não fosse bem-vinda... mas... que presença?
- Achei por bem avisar deste pacote à sua porta.
Outra caixa...
- Agradeço.
Não estava esperando pacote nenhum. Mas nele
estava escrito seu nome. Sem remetente. Olhou para o corredor do andar, e
novamente para a figura desconhecida em frente à sua porta. Algo parecia
familiar...
Rasgou o papel como uma criança que abre seu
presente. Abriu-a com curiosidade. Retirou de dentro dela um objeto e um papel
com alguns escritos.
Franziu as sobrancelhas, achando tratar-se de
uma piada. Mas os escritos eram muito sérios.
*
Tu não precisas mais de mim... pois sabes do que
precisa. Entrego-te meu ofício para fazeres dele o que desejares. Mas lembra-te:
ele só pode ser usado uma única vez. Ainda que tenhas várias chances, o caminho
é um só... e tu já sabes qual é. Entrego-te a cartilha como me entregaste a
carta. Sabes o que deves fazer. Abra-te como abriu este presente... como uma
criança.
Com amor,
Cupido
*
Olhou para dentro da caixa descrente. Ao colocar
a mão para retirar o objeto, espetou o dedo em algo pontudo. Em um movimento
automático, levou a mão à boca para sugar o sangue. Mas a dor foi muito maior
do que apenas um corte no dedo. A dor foi como se tivessem lhe perfurado o coração.
- Você está bem?...
Quando deu por si, estava recebendo socorro de
alguém que ainda não conhecia... Alguém a quem enxergava com os olhos de
criança.
- Senti uma dor estranha no peito... mas acho
que não é nada.
- Pode ser grave. É melhor chamar alguém...
Colocou a mão no peito para amenizar a dor.
- Não... não há ninguém para chamar.
- Então ficarei com você por um tempo.
- Não... não precisa...
- Não fico porque preciso... fico porque quero.
E sorriu seu sorriso mais lindo. O sorriso
descompromissado de quem já soube se abrir para o mundo.
Abriram-se pelo resto do dia.
Abriram-se por outros dias.
Abriram-se por longos anos.
Abriram-se para ver sonhos alçarem voos pela
janela...
E finalmente decidiram abrir-se para escrever
cartas de uma nova história...
Para escrever a cartilha como bem entendessem...
Como se pela primeira vez.
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