Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


domingo, 29 de setembro de 2013

"No início era o verbo"...

Esperou com olhos arregalados que a descoberta começasse.

Há tempos vinha esperando por aquele momento. Arrepiava-se ante o vislumbre do mistério, do desvelar-se de tudo que fora guardado detrás de sombras... e de luz.

Respirou por três vezes e tentou se acalmar. Do contrário sua ansiedade o faria perder alguma palavra, algum momento. O mestre ia falar...

- Podemos começar?

- Claro, claro... – disse, nervoso, ajeitando sua posição.

- Certo. Já sabes o que mais deves saber?

- O que mais? – ficou confuso. – Não posso saber mais, pois ainda nada sei. O que mais devo saber?

- Mais do que sabes, bem se vê!... Quis dizer: já sabes o que de mais importante deves saber?

- Ah, sim! – agora tudo fazia sentido. – Devo saber do que se trata a essência do Amor.

O mestre manteve-se em silêncio. Olhou-o calmamente no fundo dos olhos, como se quisesse dali arrancar a petulância de um aprendiz tão cheio de si. Em seguida, uma gargalhada atingiu seus ouvidos de iniciante, vinda da garganta do mestre sempre sisudo. De fato, a cena mais grotesca que já vira na vida. Ajeitou, mais uma vez, sua posição. Respirou por mais três vezes. Do contrário, teria gargalhado junto... ou chorado ante o terror daquela carranca.

O mestre ia falar...

- Meu caro, não há nada mais custoso do que compreender a verdadeira essência do Amor. Pois ele, em si, é dúbio, incoerente, insensato e por vezes inóspito.

- Como assim?... Não seria o Amor o sentimento mais sublime que existe?

O mestre não discordou ou tão pouco concordou.

- Ficará mais fácil entender se elevarmos o Amor ao status de ação: AMAR. O Amor, per se, não passa de um sentimento estanque, estático. Um estado que na verdade não existe. A ilusão de estar num estado de Amar. Em verbo movimenta-se, expande-se, extrai de um momento a continuidade.

Só conseguia anotar. Prestar atenção sempre fora seu forte... Mas aquilo precisava anotar, para nunca mais esquecer.

- Mestre, entendo quando fala do Amor como verbo, como ação. Nossa função seria, portanto, manter o Amor como ação, isto é, em perfeito movimento de Amar?

O mestre cruzou os braços em frente ao peito, satisfeito.

- Vejo que já entendeste tua primeira lição: Manter o Amor em perfeito movimento de Amar. E este perfeito movimento requer...

Interrompeu a frase no meio. Pela sua expressão, esperava que completasse a frase.

- Requer... Ahm... Requer...

Os braços cruzados de satisfação desfizeram-se em um clamor aos céus.

- Tempo, meu caro, tempo!... Mas não somente o tempo, pois ele é capaz de desgastar o Amor quando esse ainda não é verbo. A continuidade do perfeito movimento requer a flexão de vários outros verbos: doar-se, entregar-se, apegar-se, expressar-se... compreender, aprender, ceder... falar, calar... ouvir... E, meu predileto: ABRIR.

- Abrir, mestre?

- Sim, abrir. Amar se trata, principalmente, de abertura. Abrir-se para mudanças, abrir sua vida para outra pessoa, abrir mão do próprio ego. Ninguém é capaz de Amar e receber os benefícios do perfeito movimento se não for capaz de ABRIR seus pensamentos, sua alma e seu coração para o novo, para o intangível e inseguro, para o escuso, o imperfeito e o obscuro.

- Não tinha ideia de como Amar poderia ser tão luminoso... E ao mesmo tempo tão sombrio.

- É certo que é preciso haver luz para que haja sombra... Mas nos esquecemos de que é preciso conhecer a sombra para entendermos a luz.

Suspirou.
Pensou por alguns instantes.
O mestre não interferiu. Esperou que ele falasse.

- Mestre... – disse ele, um pouco triste. – Se Amar é mesmo tudo isso... Poucas pessoas amam de verdade.

O mestre sorriu.

- Eis nossa grande função, meu caro. Se pretendes contribuir para que o perfeito movimento nunca cesse... Assegures-te de que todos os fatores estejam presentes quando desferires teu golpe certeiro. Tua chance é uma só, ainda que o Amor tenha várias chances. Não sejas frívolo em tua pontaria. Do contrário, o mundo apenas ficará repleto de paixões sem sentido.

Levantou-se convicto. Fez uma reverência ao mestre.

Antes de sair, respirou por mais três vezes...
Do contrário, estremeceria em sua pontaria e encheria o mundo de paixões sem sentido, nada mais.


“No início era o verbo”...





quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Tempo e a Espera


Sentou-se à mesa mais confortável que encontrou, perto da grande vitrine que dava para a rua. Era costume seu – talvez pelos últimos... hum... dois anos, mais ou menos – sentar-se em algum café da cidade aos finais de tarde, quando o mundo lá fora corria para alcançar algo que não se sabia o que era. Talvez corresse atrás do tempo ou para chegar antes, ou quem sabe ainda para adiar os acontecimentos. O motivo não importava: o ritmo era frenético e, quase sempre, injustificável. Por que correr se, em algum momento, todos chegarão onde querem?
O cansaço parecia ser o senhor de toda aquela ansiedade. Olhos não se encontravam, mentes divagavam, e quando um corpo tocava outro era por algum esbarrão pela falta de espaço para a correria (atrás de algo que não se sabia o que era). Muitas vezes, não havia nem tempo para pedir desculpas ou fazer um comentário simpático como “Ah, esta correria!”. Não, cada qual continuava no próprio ritmo frenético.
Não participar daquela “normalidade” forçada fora uma resolução sua. Por isso sentava-se quando todos corriam. Todas as tardes adentrava um dos cafés da cidade, sentava-se perto da grande vitrine que dava para a rua (quando não tinha vitrine, ficava ao lado da porta mesmo) levando consigo um livro e um celular. Daqueles que traz tudo à disposição: falar, escrever, navegar, escutar... ou ignorar, quando fosse o caso. Bastava um clique num botão, e todo um mundo desaparecia. Um mundo onde as pessoas só não corriam porque deviam ficar paradas fisicamente para usufruir dele.
Gostava de lidar com coisas diferentes, mas intrinsecamente iguais. O livro e o celular, por exemplo. Dois mundos, dois tempos. Gostava de revezar entre um e outro, brincar de ir e vir de passado para presente, presente para passado, confortando-se por não saber nada a respeito do futuro. Não tinha como saber quem seria a próxima pessoa a passar por sua vitrine-tela ante seus olhos, não podia saber como seriam seus filhos e netos (caso os tivesse), qual seria a próxima descoberta da Ciência, ou se o seu vizinho de mesa espirraria às suas costas. Não tinha controle sobre nada... A não ser sobre o livro e o celular. Ainda assim, eles frequentemente lhe pregavam peças. O livro mais que o celular em termos de personalidade. O celular mais que o livro em termos de temperamento.

- Desculpe pelo atraso. É impossível transitar pela cidade neste horário... Demorei muito?

O café quente que trazia com delicadeza à boca ardeu-lhe por todo o aparelho digestivo. Dera um enorme gole devido ao susto. O líquido vazado da xícara despejada com força sobre o pires ardeu sobre a madeira da mesa.
Não conseguiu falar palavra durante alguns milésimos de segundo. Só teve tempo de recolher o livro e o celular para que não ardessem também com o café.
Olhou em volta.

- Olha, acho que você se enganou de pessoa.

O ser não identificado também olhou em volta. Mas olhou mais para dentro de seus olhos.

- Eu nunca me engano.

Não gostou nada da petulância daquele ser que era aparentemente contraditório: corria para não chegar atrasado e logo em seguida sentava-se quando todos corriam. E sentava-se à mesa errada.

- Pra tudo existe uma primeira vez... E esta é a primeira.

- Não, tenho certeza que não me enganei. Você não estava à espera de alguém?

Entreabriu os lábios para responder, mas conteve a voz na garganta. Estava? Nunca ficara sem responder a nada de pronto. Sempre tinha uma resposta na ponta da língua... nunca uma dúvida no fundo da garganta.

- Eu...

- Então, fique feliz, pois sua espera terminou. Não era o que você queria? Estou aqui...

- E o que você sabe sobre a minha espera? Você, alguém que entra sem aviso, chega à minha mesa sem permissão e ainda me faz perguntas que eu não sei responder?

O ser sorriu sarcasticamente.

- Pra tudo existe uma primeira vez, não é mesmo?

Ah, não, aquilo era de tirar do sério!

- Alguém que, ainda por cima, tem a petulância de usar minhas palavras contra mim! Quem é você, afinal?!

- Ora... Você ainda pergunta?... Eu sou quem você estava esperando.

Suas sobrancelhas, curvadas ante o ímpeto de levantar da cadeira e juntar-se, pela primeira vez, à correria desenfreada de pessoas que não se conheciam, cederam ao relaxamento. A frase, apesar de absurda, parecia fazer sentido. Há muito esperava, toda vez que se sentava em um dos cafés da cidade aos finais de tarde, por alguém que acalmasse sua pressa e reparasse em sua vigília voluntária. Pela primeira vez (quantas vezes ainda repetiria essa expressão?), alguém olhava em seus olhos e dizia que estava ali para cessar sua espera.
Olhou para o café derramado sobre a mesa. Mirou o livro e o celular repousados sobre seu colo. Olhou os olhos que não miravam nem para o café, nem para o livro ou para o celular. Aqueles olhos miravam os seus.

- Por favor, sente-se.

Sentou-se bem de frente na cadeira vazia, sem desviar o olhar.

- Há quanto tempo está aqui?

- Mais ou menos uns dois anos.

- Por que esperou tanto? Por que consumir xícaras de café, páginas em papéis e em telas se, no fim, apenas seu tempo foi consumido?

Engoliu a dúvida no fundo da garganta, que agora virava tristeza.

- Não há justificativa...

- A espera é justificada quando aliada ao tempo. Lá fora alguns correm contra o tempo. Ignoram-no e acabam se tornando escravos dele. Aqui dentro você tem todo o tempo do mundo... E só espera.

O líquido amargo acumulou-se no canto do olho.

- Quem é você?

- Acho que já respondi a esta pergunta.

- Mas... Quem eu esperava? Nem eu sei dizer...

- Esta pergunta só você pode responder.

Chorou dois anos em dois minutos. Secou os olhos por baixo dos óculos. Pegou o livro junto ao peito por baixo do casaco e colocou o celular no bolso da calça. Levantou-se sem dizer nada.

- Vai embora?

- O tempo não volta atrás... Já esperei o que tinha que esperar. Tenho tempo, por isso não vou correr. Vou apenas justificar minha espera...

Seguiu para a porta.

- Espera!

De costas, esperou que se aproximasse.

- O tempo é seu aliado agora, lembra-se? Vou com você.

Sorriram. Chovia torrencialmente.
Olharam nos olhos.
Deram as mãos.

E, sem abrir guarda-chuva, seguiram pela rua em seu próprio ritmo.