Dia 21 de dezembro de
2012. O fim do mundo Maia. A data mobilizou adeptos de todas as crenças,
religiões, pessoas de todas as nações, pátrias, tribos, raças, pensamentos e
sentimentos. A previsão era de meteoros caindo do céu em chamas, maremotos, pragas,
doenças, e também a formação de uma nova consciência de paz, amor e
fraternidade entre os seres. Alguns acreditavam na mudança da energia, o início
de um novo ciclo, da renovação das esperanças... A maioria ficou esperando
acontecimentos apoteóticos no estilo hollywoodiano. Desses, alguns poucos
construíram abrigos que resistiriam a quaisquer das intempéries climáticas;
outros foram para alguma cidade onde não seriam atingidos pelas mesmas
condições hipotéticas de mau tempo. Talvez um ou dois - como você e eu - apenas
seguiram com suas vidas normais...
Ouvi vários suspiros
aliviados e comentários esperançosos depois dessa data. De que a vida mudaria dali para frente, porque “o mundo não acabou”. Não acabou... Com
efeitos especiais e grandes heróis intergalácticos, ou naves espaciais e um
show de encerramento, como brincavam alguns. Realmente, não foi o fim do
mundo... Mas de que mundo estamos falando?
Dia 16 de dezembro de
2012. Em algum lugar do outro lado do mundo - aquele mesmo mundo que acabaria
apoteoticamente cinco dias mais tarde, na crença de muitos – via-se traços do
fim. O início de um fim prematuro. Um fim não causado por meteoros, maremotos
ou homenzinhos verdes; um fim causado por mãos masculinas contra um corpo
feminino. Um corpo e uma alma que deveriam sofrer por terem enfrentado e olhado
seus agressores nos olhos. Um corpo, uma alma e uma dor que deveria acontecer
porque ela ousou se libertar, por milésimos de segundo, de uma cultura que a
ensinou de que mulheres eram inferiores a homens, e que ela deveria sofrer por
ter nascido mulher.
Jyoti Singh Pandey. Foi esse o nome revelado
pelo pai, poucos dias depois de sua morte. Uma morte prematura e dilacerada, a
morte por mãos masculinas contra seu corpo feminino. Tinha 23 anos, estudava
medicina. Não era uma jovem mulher como tantas outras de sua cultura, e ao
mesmo tempo tinha as mesmas dúvidas e o mesmo sonho de mudar sua condição. Sua
sentença de morte foi ter nascido mulher em uma cultura machista e ter entrado
num ônibus com seis homens em 16 de dezembro de 2012. Jyoti não era, naquele momento,
um ser humano merecedor de respeito. Era um ser inferior, um ser que merecia
ter seu corpo violentado, dilacerado e deixado à própria sorte por apenas um
grave e odioso motivo: ser mulher. E não uma mulher comum... Uma mulher linda,
educada, com uma inteligência provavelmente superior a de seus agressores, e
com a coragem de olhá-los diretamente dentro da alma mesmo diante da morte.
Jyoti Singh Pandey não queria ser heroína, tão pouco
mártir. Tinha sonhos, desejos, paixões, defeitos, qualidades e medos como
qualquer outra mulher da sua idade. Talvez tivesse planos para os próximos
anos. Planos interrompidos por mãos masculinas contra um corpo feminino. Seu
silêncio mortal falou na voz de milhares de outras mulheres, tanto as que
viveram para fazer dela a heroína e mártir que nunca quis ser, quanto para dar
voz a tantas outras mulheres mortas da mesma forma brutal e covarde.
Dia 28 de dezembro de 2012. O fim do mundo de Jyoti
Singh Pandey, e o início de um novo ciclo para algumas mulheres do mundo que
não acabara sete dias antes. Para mim, mais um ano de vida. Para milhares de
mulheres, a possibilidade de uma vida que nunca teriam se não fosse a morte da
mulher de 23 anos, indiana, linda, educada, inteligente e estudante de medicina,
cujo nome era Jyoti Singh Pandey. Um nome que ficará na memória de tantas
mulheres de seu país e do mundo.
Foram necessários nove dias para que eu conseguisse sentir
reverberar dentro de mim - mulher, 31 anos, mãe, atriz, escritora, cheia de
sonhos, medos e planos para o futuro de um mundo que não acabou – a dor pela
perda prematura de Jyoti Singh Pandey, uma mulher que não conheci e não teria
conhecido, mas que estava conectada a mim pelo simples fato de ser mulher. Pelo
simples fato de ter sonhos, planos, medos e dúvidas como todas e todos nós. Por
ter sido um ser humano, e por não ter sido tratada como tal pelas mãos
masculinas de seis homens.
O mundo não acabou... Para mim, para você. O mundo acabou
para Jyoti Singh Pandey, indiana de 23 anos. O mundo acabou para tantas outras
mulheres assassinadas e desrespeitadas. O mundo acaba para tantas crianças
violentadas. O mundo acaba para tantas mulheres mortas pelo simples fato
de serem mulheres. O mundo acaba para as famílias que perdem suas amadas mães,
irmãs, filhas, esposas. O mundo acaba...
O mundo onde o mundo de mulheres indefesas acaba para
sempre...
Esse, sim, deveria acabar.