Tudo começou com uma frase.
Seu rosto não estava bem definido. Os
lábios pareciam ora lívidos, ora leves. Algumas horas sérios, contundentes,
exigiam mais do que somente palavras; noutras nus, incandescentes, quase
tocavam o céu.
Mas foi de uma frase que tudo começou...
Os lábios, então, suplicavam. Algo. Não
para saber, não para se abrir... mas para falar.
E os olhos... havia algo naqueles olhos.
Quando os lábios estavam nus e pareciam querer beijar o céu, os olhos
escapavam. Procuravam no ar, algo nas montanhas. Pareciam olhar para o alto na
inocência de uma criança que vê desenhos em nuvens, que fantasia seus desejos
em uma tela branca de ilusões. Os olhos eram vagos... mas queriam. E quando
eles olhavam diretamente... fugiam. Era naquele olhar no céu, no alto, naquele
olhar nu que meus olhos se espelhavam.
E pelos olhos... E pelos lábios...
Falou-se a frase. Era uma só. Mas foram muitas. E dos lábios e dos olhos saíram
mais do que apenas palavras... Saíram faíscas nas lágrimas e na saliva em
partes onde não se podia falar nem enxergar. Mas nós enxergávamos...
falávamos... sentíamos cada toque nu de olhos e lábios.
E a conexão aconteceu.
Desde o momento em que a virtualidade
dos gestos não nos podia alcançar dentro do peito. Olhos e lábios nus chegavam,
enfim, a um coração cru, em carne viva, jorrando de dentro de si mesmo, com a
última força que tinha, os próprios sonhos esquecidos. Um coração farto de
querer, farto de procurar em nuvens o que não era real.
Enfim, tudo era real!
Mas qual seria o preço de sair da
fantasia? O preço de subitamente despir-se no escuro, ouvindo o ruído forte e
intenso de outro coração, que pulsava na mesma escala? O troco de fazer-se tirar
máscaras, adereços, apreços, lembranças... esqueço... esquece. Era demais
conviver com o calor que aquece quando já se havia acostumado a ser inverno.
Quando já se havia acostumado a não jorrar mais. Um coração acostumado à
solidão, ao bater em si mesmo para não ser abatido...
Loucura?
A conexão foi inevitável. Era loucura...
dois corações tão diferentes!
- Mas nem tanto assim...
Duas batidas em descompasso, mas em busca
de banimento, de expiação, de fôlego através das vísceras. A conexão, antes
virtual, tornou-se visceral. Olhos e lábios eram visceralmente conectados em
imagens que não eram mais efêmeras como as nuvens... Não dissipavam mais apenas
com o sopro do vento. Não se perdia mais o contorno do desenho ao olhar para o
lado.
Era como naquelas vezes quando
esquecemos o que procuramos ao sabermos o que encontrar.
O real finalmente não iria mais rasgar a
fantasia ao final do carnaval. A conexão visceral de todos os contornos de
pernas e abraços não voltaria mais a ser virtual...
Mas virtuosa!
Ah! Era como tocar as nuvens e acreditar
que eram sólidas! E os dois sentiram... e acreditaram. Não havia mais nada
entre nós... apenas a linha contínua que unia lábios, olhos e coração. E nada
poderia atenuá-la...
Mas os olhos, com suas enormes pupilas
que dilatavam ante a presença, não eram felinos... Eram de águia. E miravam
longe.
E, por fim, os olhos se perderam. Os
lábios se desencontraram. As palavras feriam mais que mil punhais, dilacerando
o coração. Abatido... sem bater.
E o banimento tornou-se maldição.
E a expiação tornou-se sofrimento.
E os olhos de águia voaram rasante sobre
milhões de fantasias irreais.
E os lábios proferiram palavras
decoradas, extraídas virtualmente das vísceras.
Não havia mais fantasia. Não havia mais
realidade. Apenas o Adeus...
A todos os deuses. A todas as formas de
viver-se só. Aqueles lábios e aqueles olhos tinham que ir...
E já não eram punhais. Eram garras de
águia triturando o coração...
Com suas asas, resolveu fazer seu voo.
Mas a responsabilidade de manter a conexão era só sua. Empaticamente.
Telepaticamente. Visceralmente...
Para não mais abater-se. Para não mais
abater. Para deixar bater o coração.
Mas se esqueceu de uma coisa...
Estariam unidos pelo fio invisível de
uma canção. Pelo toque gelado de um Cristal. Pelo raio de sol que entrasse em
seu quarto, inundando a manhã. Pelo frio brilho da lua cheia numa noite de
primavera...
Em todas as vezes que seus lábios
procurassem o céu...
E em todas as vezes que seus olhos de
águia perdessem a direção.
Naquela única frase...
Porque a sua loucura tinha sido igual
a minha... E a minha loucura tinha sido igual a sua.
Pois aquele amor não era como as
nuvens...