Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Carta

Já não era mais um aprendiz...

Era o que tinha de ouvir toda vez que, em desilusão, voltava às barbas do velho mestre para vislumbrar um novo caminho.

“Não existe caminho certo nem errado... pois o caminho é um só. Basta que saibas disso, e estarás sempre rumando para onde deves chegar.”

E aquelas eram as palavras que martelavam em sua mente desde que saíra num mundo desconhecido e vazio de paixões. Ah, que árduo ofício o seu, em um lugar onde pessoas se procuravam por caminhos tortos e que não sabiam enxergar-se quando se encontravam! Já se cansara de vaguear, em noites enluaradas ou no profundo breu, em ventanias e tempestades, em brisas mornas e no chão coberto da mais cruel solidão. Camas continuavam vazias de intimidade ou cheias de corpos que se encontravam, mas não se preenchiam. Amores que não sentavam à mesa, que não desvelavam a cortina dos segredos, que não olhavam no fundo dos olhos. Amores, enfim, que não se “abriam”, no sentido que o mestre havia muito bem dito quando ainda era um aprendiz.

Mas já não era mais um aprendiz... já não era... não era? Ainda não se convencera. Não se convencera de que não era preciso aprender e deixar-se apreender todos os dias pelo mesmo sentimento. Que não era preciso olhar com os olhos inocentes a cada novo dia, a cada novo dormir e acordar naquele tempo que não era um tempo. E mesmo que se esforçasse, mesmo que soubesse como deveria agir, parecia não obter sucesso em todos aqueles anos humanos.

Sim, houve olhares, beijos, toque e sexo. Paixão... muita paixão. Patologicamente vivida, em mesma raiz. Inebriante, sublime, até um pouco incômoda... mas era verdade que, por mais que quisesse fazer alcançar o patamar seguinte e ao mesmo tempo ao lado – o Amor – não fora capaz de fazer dar o passo adiante. Sim, pois na paixão não é preciso abrir-se. Na paixão saem espontaneamente as faíscas, brilham numerosas as estrelas, exalam as essências das flores ao redor. No amor, não. É preciso enfrentar a tempestade para ver faiscar o céu, é preciso dissipar as nuvens para ver estrelas, é preciso enfrentar os ventos do inverno para ver florescer a primavera e seus odores. E ninguém quer mais aprender a perder para poder ganhar...

*

A noite estava mais fria que de costume, o que fazia da sua vigília algo ainda mais estarrecedor. Do alto podia ver a cidade toda e cada um dos “não mais aprendizes” em seus postos, sedentos por algum resultado. Talvez tivessem - também eles - perdido a noção do que era verdadeiramente importante...

Olhou seu reflexo na vidraça da janela. Por um momento, esqueceu-se do que deveria observar e inspirou-se na visão instintiva de um aprendizado que perdera. Mundos que se misturavam, mas que não existiam um para o outro. Assim como os mundos pessoais que se esbarravam acidentalmente, mas que sentavam à mesa sozinhos, declamavam um novo monólogo a cada manhã, jogavam o corpo em camas vazias de intimidade... com o outro e consigo mesmos. Tudo o que era comum e incomum... num só reflexo.

Por trás daquele reflexo estava, enfim, o que deveria observar. A chuva torrencial escorria pela vidraça, dando um ar psicodélico ao mundo lá dentro. Um raio fez cair a energia em boa parte do bairro... e foi quando pôde ver, finalmente, a verdadeira essência daquela cena bucólica. Aproximou-se para não perder nada, enquanto via o seu tatear no escuro, a procura por fósforos e – finalmente! – o encontro com o passado nas cartas. Não sem antes aquele chute de desabafo no objeto inerte. Era preciso, de qualquer forma. Já havia sofrido demais...

“O caminho é um só.”

O mestre dizia. Qual caminho seria aquele? O de tatear no escuro, de chutar caixas esquecidas, de enfrentar passados não revelados?... Precisava entender para que todos entendessem. Era preciso enfrentar o escuro agora. Alinhar-se com o escuro dentro. Somente por entre clarões de raios era possível ver, por milésimos de segundo, as expressões atrás da vidraça.

A caixa foi aberta e as cartas, finalmente, relidas. E reliam ao mesmo tempo. O mundo dentro e o mundo fora. A carta e a cartilha. Depois de todos aqueles anos humanos quase perdidos, pôde sentir brotar em si a lágrima da gratidão... Apesar de não ser fácil ouvir aquelas palavras todas de novo.

Pousou a mão sobre o peito e fechou os olhos enquanto liam. Choraram. E ele pôde, finalmente, entender.

“Talvez ele se referisse ao único caminho a seguir... seguir em frente. Caminhar, apenas. Sabendo para onde, sem deixar de caminhar. O caminho era um só: decidir continuar caminhando no caminho escolhido. Um caminho, apenas.”

Ouviu o ranger do trinco da janela. A chuva amansou, curvando-se ante a atitude corajosa de entregar-se. Da carta escrita um avião foi feito para finalmente alçar voo.

Abriu os braços na esperança de recolher mais aquela carta... e a acolheu tão logo foi jogada noite adentro pela janela afora. Sentou-se no parapeito e leu sem se dar conta dos anos humanos.

*

Caro Cupido,

Muito tempo se passou desde a última carta que lhe escrevi. Cartas de uma escrita impecável e de escassez de sentimento. Não me preocuparei com a simetria agora... apenas com a empatia. Parei de escrever talvez por ter deixado de acreditar há tanto tempo, por pensar nestes anos todos que finalmente havia recebido o que pedi. Mas a verdade, meu querido cupido, é que me iludi por acreditar que o amor é o algo facilmente alcançável com uma simples conquista. Esqueci-me de que é preciso enfrentar a escuridão, levantar-se todos os dias com a inocência para poder enxergar. Achava que não precisava. Achava que era coisa de livro de autoajuda, de psicologia barata, daquela velha cartilha mofada no fundo do armário.

(...)

Não queria ter sofrido menos... o sofrimento sempre me fez crescer. É verdade que a descoberta só vem quando somos capazes de assimilá-la. Antes não teria... não teria como. Pensava só em mim, mesmo escrevendo sobre o amor... sobre o amor que eu julgava ter, o amor que julgava conhecer.

(...)

Não é doce acordar do sonho. Não é belo ter que enfrentar o que não saiu como planejamos. Ah, quisera eu não ter esse conhecimento tão piegas e pífio sobre o meu próprio passado! Achando-me o ser mais informado do mundo, engrandecendo meu próprio ego e me esquecendo do principal: olhar o outro. Tentando achar palavras que justificassem o amor que julgava ter por mim... e não tinha. Procurando sentido nas cartas de amor cuidadosas que escrevia. Mas não havia amor... nem pelo que estava fora, nem pelo que estava dentro. Tinha apenas um sonho, e nenhuma vontade de abrir-me para que ele realmente acontecesse. Como uma criança mimada, quis apenas suprir carências. E é neste ponto, Cupido, que eu lhe confesso: sua ajuda me fez ver que o amor acontece apenas onde é bem-vindo.

*


E, com os olhos em lágrimas de purificação, decidiu que já não era mais necessário. Recolheu seus instrumentos e, segurando junto ao peito a carta lançada da janela, entregou-se ao abismo da sua absolvição.