Utilizando...

Utilidade:
s.f. Qualidade de útil.
Objeto útil; emprego, uso, serventia.
Útil: adj. Que tem uso, préstimo ou serventia; que satisfaz uma necessidade. Que traz vantagem, proveito ou benefício;

Todos os textos aqui postados me foram úteis em alguma fase da vida. E têm uma utilidade atemporal, perpétua. Longe de pedir por aprovação ou pretenderem marcar o leitor em algum momento, estes textos desejam e objetivam a utilidade. Não pedem reconhecimento ou aplausos, amor ou ódio; A utilidade é livre para o pretexto, o texto que quiser. Querem, porém, seu respeito. Podem não ser de todo belos, éticos, saudáveis, proféticos. Mas pedem que, se utilizados, tenham sua autoria reconhecida, como um preço justo e nada caro. Leia, releia, use, utilize. Mas dê a eles o sobrenome, pois todos tem mãe.
Assim, faça deles o uso (ou a utilidade) que quiser.

Raquel Capucci


sábado, 2 de novembro de 2013

Segundo

Tropeçou grosseiramente, em meio ao breu, no objeto cúbico mal posicionado atrás da porta do quarto dos fundos. A topada certeira acometeu o dedo mindinho, o que fez com que soltasse um palavrão de desabafo - como se maldizer o ocorrido fosse amenizar a dor.

Já não tinha mais a quem culpar pela desorganização da casa ou por caixas pesadas esquecidas atrás da porta do lugar onde estavam vela e fósforos. Tão pouco maldizer o passado faria o sofrimento ir embora. Um passado não tão próximo como a topada no dedo mindinho, nem tão distante quanto o início daquele grande amor. Um amor que durara anos, em meio a palavras de amor e palavrões.

Por sorte, encontrou uma lanterna ao invés da vela e dos fósforos. A lanterna ajudaria a manter o foco no que fora ali fazer. Por certo a vela teria trazido memórias que preferia não acessar. A tempestade desabava sobre a cidade no início da noite, e não era mais possível ouvir nada além dos trovões, do som da água caindo e os próprios pensamentos.

Após um ano completo, pensava já ter se livrado da dor. Aquele era um mundo no qual se cobrava força, coragem e paz de espírito, apesar dos pesares. Sempre fora uma figura forte, com passos firmes que nunca tropeçavam. Naquela noite, tropeçou desajeitadamente na maldita caixa atrás da porta. Lembrou-se, com certo sofrimento, de que deixara pegadas marcadas demais sobre aquela história. Como se tivesse pisado sobre seus sonhos, sobre os sonhos dos dois e sobre a possibilidade de realização de qualquer deles. Era um fardo pesado demais para carregar, mas o mundo lhe cobrava a resiliência. Não foi fácil, mas em apenas três meses era como se aquele grande amor nunca tivesse acontecido. “Outros amores virão”, era a frase que ouvia repetidamente daquele mundo que achava que tudo sabia. Não queria outros amores... Queria simplesmente amar-se naquele momento.

Não pensava que a culpa fosse totalmente sua. Não era. Talvez não houvesse culpa. Talvez houvesse apenas cobranças demais e amor de menos. Não, o amor era suficiente... mas cada um fora incapaz de deixar de olhar para as próprias pegadas e entender que, na verdade, o importante era apenas caminhar juntos.

Sacudiu a cabeça e chutou a caixa, como se para espantar aqueles pensamentos. Com o choque, a lanterna soltou-se da mão, caindo com seu foco sobre a caixa. Teve de abaixar-se para pegá-la, ficando cara a cara com o objeto. A tempestade ainda abafava todos os sons da cidade, e pôde ouvir claramente dentro de si: Abra-a. Como se uma enxurrada estivesse prestes a carregar tudo, agarrou-se à caixa como se disso dependesse sua sobrevivência. Abriu-a em apenas um segundo...

Em um segundo, quilos de passado revelaram-se ante seus olhos. Algo que havia sido esquecido há tanto tempo, e que remetia ao início de todos os seus medos, seus anseios e seus desejos. A caixa, estranhamente esquecida atrás de uma porta, estava repleta de cartas escritas há muitos anos.

Não se lembrava de ter escrito tantas cartas naqueles anos de relacionamento. Perguntou-se por que elas não foram divididas na separação, ou sumariamente queimadas em latas de tinta – a mesma tinta usada para cobrir escritos de amor nas paredes. Não havia razão para estarem ali, intactas, convictas, resolutas. Depois de tantos anos de pegadas sobre sonhos, havia deixado aqueles para trás. A curiosidade foi maior do que o medo de revirar aquele baú metafórico de memórias. Vasculhou as cartas com o cuidado de quem manuseia um tesouro.

Não eram cartas de amor, como esperava. Eram cartas que descreviam todos os sentimentos que tivera em cada um dos seus relacionamentos. Cartas endereçadas a alguém em quem acreditava, revelando segredos que nunca poderiam ser remetidos. Uma carta toda primeira segunda-feira de cada mês... Reveladas em um segundo.

A tempestade fora se tornou tempestade dentro. A enxurrada de sentimentos levou embora a falsa pretensão de força e coragem. Nunca em sua vida pensou conseguir tamanha sinceridade consigo. Chorou lágrimas de anos em que brigara com as próprias atitudes, em que evitara entrar em contato com a própria dor por meio de alguns palavrões falados ao vento e outros tantos chutes no desconhecido.

A água do céu tornou-se música, enquanto sua sinfonia ia aos poucos cessando em pianíssimo. A água do coração ainda jorrava através dos olhos, lavando expectativas não cumpridas. Ao dobrar e envelopar a última carta, olhou pela janela e sorriu. Correu como uma criança travessa à busca de papel e caneta, e escreveu em quase um segundo sob o foco da lanterna, sem se dar conta de que a cidade já se iluminava.

Escreveu e assinou. E pensou: “Esta será remetida.”

E dobrando-a em forma de avião, fez com que seus sonhos alçassem voo pela janela.