Gérson deixou como sempre os sapatos à porta enquanto arrancava as meias dos pés, afrouxava a gravata, despia-se do paletó e jogava displicentemente sua pasta de trabalho sobre um dos lados do sofá. Era quarta-feira, dia de jogo, então não perdeu tempo para pegar o controle e ligar a TV, jogando-se no sofá com maior displicência do que a pasta. E aquela era a final! “Finalmente”, pensou ele, “Algo na TV que não me fará dormir.” Mesmo sem tirar a roupa com a qual vinha da rua, esparramou-se no sofá esperando pelo início da partida. Mas pensou: “Na hora de pegar a cerveja na geladeira é que é ruim morar sozinho!”.
Levantou-se com preguiça e foi até a geladeira, ainda maldizendo a solidão, mas comemorando a solteirice. Ninguém para atrapalhá-lo a assistir o jogo, querendo contar como foi seu dia, que ele tire logo aquela roupa de um dia todo de trabalho e vá tomar banho, ou que queira ver um filme água com açúcar ao invés do jogo. Nada, além do sofá, a TV, a cerveja e o silêncio.
Por um tempo, sentiu-se nostálgico. Não só de desvantagens se faz um casamento... Fora casado por doze anos. Anos de algumas brigas, muitas conquistas e mais ainda de aprendizado. Uma época boa, aquela. Os dois se gostavam, conheceram-se ainda na faculdade, mas algo os levara a ficar juntos pela comodidade de montar um patrimônio comum, e não por amor. Com o tempo, ele cansou-se das cobranças em torno da vida financeira do casal, e ela apaixonou-se por outro homem. Nada que não pudesse ser previsto. E, de fato, apesar de ter sido um tempo bom, não foi tão difícil assim ficar sozinho... Mas ele, do alto dos seus 40 anos, já não queria noites de chegar em casa sem ter com quem conversar. Queria se apaixonar, dividir não só coisas, mas uma vida. E isso ele nunca tivera.
O narrador anunciou o início da partida, e tirou Gérson de seu devaneio. Ele se acomodou cuidadosamente no sofá, para não derramar a cerveja já aberta, colocou seus pés sobre a mesinha de centro da sala e sorriu, satisfeito. Nada poderia atrapalhar aquele seu descanso. Nada...
Subitamente, um breu tomou conta de seu apartamento, da rua e, pelo jeito, de boa parte da cidade. Pôde ouvir da janela as vaias e gritos de outros torcedores, que provavelmente já estavam, assim como ele, sorrindo sentados em seus sofás, com uma cerveja na mão. Alguns gritos femininos de desgosto pareciam denunciar torcedoras fanáticas, acompanhando seus namorados, familiares ou amigos... Ou, então, espectadoras assíduas da novela, provavelmente em alguma parte de suspense ou romance.
Gérson maldisse a companhia energética, soltou alguns palavrões em voz baixa (costume ainda dos tempos de casamento, quando sua ex-esposa não gostava de ouvi-lo pronunciar tais palavras) e concluiu que, a melhor atitude seria procurar uma vela, uma caixa de fósforos e tentar tatear até o balcão da cozinha, a fim de posicionar a cerveja de forma que não esbarrasse nela.
O mais difícil não foi posicionar a lata de cerveja, mas foi preciso iniciar uma verdadeira epopeia heroica atrás de uma vela e uma caixa de fósforos. Onde os tinha deixado mesmo? Não é possível, sempre os deixava no mesmo lugar, para não perdê-los! Naquela partezinha da janela da cozinha, em cima da pia!... Lembrou-se então da sua empregada doméstica. Ela tinha assim uma certa mania de colocar as coisas em locais, digamos, menos acessíveis. Gérson não sabia ainda se ela sarcasticamente gostava de fazê-lo procurar as coisas pela casa, ou se só detestava ver coisas “fora do lugar”. A cozinha e a sala (mais especificamente o sofá e a TV) eram os locais que ele mais bem conhecia do apartamento novo, que adquira logo após a separação, fazia apenas poucas semanas. Ainda não tinha passado pela situação de ter de tateá-lo para procurar coisas como uma vela e uma caixa de fósforos numa noite sem lua. “E essa luz que não volta?!”.
Nada de luz. Os minutos iam passando, e ele só conseguia pensar no jogo... Bom, na vela e nos fósforos também, que deviam estar em algum lugar do depósito. Mas... Onde é que ele ficava mesmo? Gérson foi tateando paredes, pois no escuro total é muito difícil se ter direção num lugar que pouco se conhece. Enfim, chegou a uma porta. Como de costume, as chaves estavam penduradas na fechadura. “Para que serve uma porta trancada se as chaves estão na porta?”. Não teve tempo de explanar sobre o assunto. Destrancou a porta e a abriu. Ainda não podia ver nada, mas percebeu alguma coisa de estranho. Onde estavam as prateleiras que apertavam o corpo contra a parede? Tateou mais um pouco...
Um gemido alto o fez levar um susto daqueles. Seu coração quase veio parar na boca. Um rato? Mas como poderia trombar num rato que parecia ter por volta de 1,60m?! Não é um rato, é...
- Desculpe! - falou uma voz macia.
O susto dele agora foi maior. A empregada ficara trancada no depósito?! Não, que ideia mais louca! E não era a voz dela. Nunca tinha ouvido voz mais bonita em toda sua vida. Por um momento, em sua confusão naquele escuro todo, pensou por um momento em ter se apaixonado por aquela voz. “Deixe de bobagens, Gérson... Fale alguma coisa!”
-I-imagina, a culpa foi minha... - respondeu, sem saber. - Desculpe o comentário maluco, mas eu achava que tinha entrado no meu depósito.
Ela riu. E que riso maravilhoso!
-Estamos no corredor do andar. Talvez tenha se confundido... Você é novo aqui, não é?
-Sim... Me mudei há poucas semanas. Acho que não nos conhecemos ainda...
- Com certeza não. Eu trabalho demais, sabe? Quase não paro em casa.
- É, eu também. Deve ser por isso.
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos.
-Estranho nossa primeira conversa ser logo hoje, nessa situação... - Ele tentou estender a mão, mas se deu conta de que não enxergava nada. - Prazer, Gérson.
- Lúcia. Não se preocupe. Na verdade, acabei de chegar em casa. Não gostaria de entrar? Para termos uma conversa melhor entre vizinhos.
Gérson se surpreendeu com a desenvoltura e simpatia da moça. Sentiu-se confortável naquela situação, mesmo sem saber se deveria aceitar o convite. Lúcia parecia ser alguém que não se importava com convenções sociais, com regras vazias e não demonstrava medo por acontecimentos inesperados. Sendo levado por aquela onde destemida e animada, Gérson respondeu:
- Claro, adoraria entrar. - Ele pôde perceber o sorriso largo de Lúcia.
- Venha, por aqui. Deixe-me só pegar as chaves para abrir a porta.
Lúcia passou a tatear vigorosamente sua bolsa a procura das chaves. Enquanto Gérson esperava, sentiu com estranheza algo que encostava em sua perna e parecia dar farejadas para todo lado. Dessa vez, só podia ser uma coisa: o rato! Ele deu um pulo que, não fosse pelo sedentarismo das noites de futebol na TV e cerveja, teria feito com que chegasse ao teto. Lúcia prendeu a respiração de susto.
- O que foi?! Aconteceu alguma coisa?
- Um rato! Farejando a barra da minha calça... Um rato bem grande, eu diria!...
Lúcia se recuperou do susto, suspirou aliviada e riu novamente. Ai, ai... Dessa vez o suspiro foi de Gérson.
- Não é um rato, é minha cadela da raça labrador! - E riu mais ainda. - Luz, diga olá para nosso novo vizinho!
Gérson sentiu algo que pulava nele com muita festa, mas Luz não latiu. Até achou interessante, pois nunca ouvira falar de uma cadela com aquele nome tão peculiar...
- Pronto, garota! Agora já estamos devidamente apresentados. Luz se chama assim, pois é ela que ilumina meu caminho. É minha única companhia. Não é, coisa fofa?
Lúcia acariciou vigorosamente a cadela, que pareceu ficar animada.
-Agora Luz entrará em seu período de descanso. Ela me ajuda muito!
- Claro... - Gérson deu um sorriso amarelo sem entender, mas, ainda assim, achou interessante como Lúcia tratava a cadela como se fosse um membro de sua família.
- Venha, entre!
Gérson entrou no apartamento de Lúcia como quem adentra um templo. Pela reverência, sim, mas também por não estar enxergando absolutamente nada naquela escuridão.
- Não precisa fazer cerimônia... Segure a coleira que Luz te levará até o sofá.
Claro... pensou Gérson. Afinal, o nome dela era Luz, não? Bem que, naquele momento, ele queria que a outra luz estivesse ali, não para que ele pudesse ver o futebol, mas para que conseguisse ver o rosto de Lúcia... Não estava se aguentando de curiosidade.
Gérson e Lúcia conversaram por muito tempo, mas para os dois o tempo simplesmente não existia mais. Falaram sobre tudo: trabalho, lazer, esportes, artes, filhos, casamento e, é claro, sobre a luz.
- É... Não parece que a luz vá voltar logo.
- Ela já está aqui do meu lado, acho que estava com sede.
- Como? Ah, sim, a Luz... Claro. - Gérson se divertiu com a confusão. Lúcia, por seu lado, mudou logo de assunto. E como era falante, alegre, cheia de vida. Ela sim, parecia a luz na vida de Gérson.
Algum tempo depois, a luz, aquela que interrompeu o jogo, voltou aos apartamentos, ao bairro e a grande parte da cidade. Gérson estava tão acostumado à escuridão, que teve de ficar com os olhos fechados por alguns segundos. Não se ouviu os gritos dos torcedores ou das espectadoras das novelas, pois àquela altura tanto novela quanto jogo já haviam terminado.
Ao abrir os olhos, Gérson teve a sensação de estar na presença de um anjo. Pele alva, lindos lábios, longos cabelos, olhos...
-Finalmente, a luz voltou! - disse Gérson, feliz por sua descoberta.
-Como é?
Gérson estranhou.
-Estávamos sem luz há algum tempo...
- Ah, desconfiei mesmo que estávamos sem luz... Mas, a Luz está aqui para isso, claro ou escuro não fazem muita diferença pra mim...
Então Gérson compreendeu. Lúcia não podia enxergar, e Luz era seu cão-guia. Em nada aquela informação fez diferença em sua percepção daquela mulher. Ela não precisava nem de luz, nem mesmo da Luz, pois tinha brilho próprio.
- Já que você agora pode ver, que tal jantarmos? Estou morrendo de fome desde que cheguei... - E sorriu seu lindo sorriso.
E um jantar se transformou em jantares. Beijos se transformaram em promessas. Sonhos em namoro. E o namorou, depois de um tempo, não mais os satisfazia. Marcaram o casamento. Gérson teve dificuldade de encontrar uma aliança que brilhasse tanto quanto Lúcia.
Após a cerimônia do grande dia, a festa. Todos os convidados já presentes, divertindo-se entre parentes e amigos. Luz, como sempre, iluminando o caminho da noiva. Em determinado momento, o breu. Ouviu-se uma grande vaia coletiva, enquanto Lúcia perguntava à sua mãe:
-O que aconteceu, mamãe?
Gérson entra com uma lanterna voltada para seu rosto, falando ao microfone.
- Acalmem-se todos, isto não é um apagão! Foi assim que Lúcia e eu nos conhecemos. E foi dessa forma que eu realmente consegui enxergá-la, e ver o mundo através da luz dela.
Luz inesperadamente deu um latido sutil.
- Desculpe, Luz, mas dessa vez não estamos falando de você.
Gérson aproximou-se de sua esposa, já em prantos, e terminou.
- Claro e escuro não fazem mais diferença para mim, pois você ilumina meu caminho, sempre.
Grandes aplausos, choro de tias desavisadas, tilintar de copos, farejadas de Luz e alguns tropeços bastante sonoros de alguns dos garçons. A festa correu como realmente devia, da forma como Lúcia via o mundo: cheio de sons, de cheiros, de abraços, de carinhos.
E a vida de casados foi assim também. Nem sempre os estímulos aos sentidos eram agradáveis, pois Lúcia sempre dizia que não acreditava em “felizes para sempre”, e Gérson já havia vivido isso na pele. Mas, enquanto eles tivessem Luz e aquela escuridão na qual se conheceram, estariam bem.